Quando criança demorei um bom bocado para desacreditar no Papai-Noel, Senhor Noel. Aos dez anos, ainda tinha o hábito da cartinha natalina deixada a Deus-dará: sim, a Deus- dará, porque nessa idade, o meu bom velhinho não era um produto neoliberal à la Coca-cola, senão um espírito que - na minha imaginação - inspirava os entes próximos a cometerem atos de bondade. É possível que eu ainda acredite nisso e que essa seja a minha versão atual de Deus, mas aos dez anos, caríssimes leitores, quase tudo era possível. Até que um dia minha avó materna me disse assim de jeito "seu Papai Noel se chama Raimundo".
Ali o meu mundo desabou e comecei a chorar. Para então criar a fictícia noção de um Noel Gasparzinho, isto é, a minha força plástica.
Sendo assim, senhoras e senhores, não sei bem o que nasceu primeiro, o espírito ou o sopro, mas, seja como for, o objetivo dessa microcrônica é outro. Estamos bem antes desse incidente natalino, voltemos aos anos de 1989 ou 1990, eu e meus quatro ou cinco anos.
Meus pais me levaram ao Center Norte, shopping badalado em São Paulo - na época - porque traduzia num single genial o espírito capitalista do Natal, como esquecer: "Center Norte, alegria, Papai Noel existe mesmo e mora lá".
Ops! Como a memória é interessante, ou, no caso, a não-memória!
Nunca fui ao Center Norte.
Fomos ao "coquinho" mesmo, ao Shopping Interlagos, nosso shopping de quintal. Mas para mim era o Center Norte (novamente, Força Plástica). Apreensiva, queria muito pedir àquele bizarro senhor algo ainda mais bizarro: um boneco gigante do Bozo. Sim...Era eu uma criança encantada pelo palhaço Bozo. Havia naquela representação certa canastrice que o fazia muito interessante, como a Xuxa verde da década de oitenta. Era o meu anti-herói, eu sempre gostei dos esquisitões. Contudo, havia uma segunda opção mais sóbria para ser pedida por uma garotinha com o meu perfil (eu era tímida e hoje posso dizer que sou uma falsa extrovertida. Ando muito feliz desde a quebra do meu celular, sinto imenso pesar em ter de consertá-lo amanhã...), um vinil do grupo infantil "Turma da Alegria". Havia uma Amanda nesse grupo, meu verdadeiro nome (não sou Sofia, uma pena, seria o nome da minha segunda filha se houvesse uma primeira...) e eu sentia muito ciúmes de que existisse no mundo, no universo, no caos, uma pessoa de mesmo nome que o meu.
Para entender o mistério, virei fã da bandinha dos 80's e, a fim de selar essa união, um vinil com a carinha dos pequenos, sendo eu ainda menor, era uma boa pedida.
Mas eu queria o esquisito desforme anti-herói cocainômano Bozo.
Sentei no colo do velhinho, algo por si só igualmente bizarro....talvez sentasse sobre o banco do trenó. Pois bem, disse-lhe: "eu quero o disco do Trem da Alegria" (ato falho: é TREM, não turma).
E saí, em silêncio, do trenó fake não Center Norte alegria, onde residia o verdadeiro e ilustre Papai Noel.
Ao chegar ao carro dos meus pais, sentada no banco de trás, comecei a chorar de soluçar. Chorei muito. E disse, como quem revela um segredo, que o meu desejo verdade-verdadeiro era o boneco Bozo, mas, como saberia o Papai Noel, se lhe disse o vinil do Trem da Alegria? Seria capaz, Santa Claus, de adivinhações dos pensamentos infantis dos esquisitinhos?
Bom. Como filha única e mimada que sempre fui, ganhei o boneco Bozo naquele Natal e , em uma data posterior, o disco do Juninho Bill - meu crush aos seis - e de seus comparsas, dentre eles a segunda Amanda a existir no mundo.
E todos foram felizes para sempre. Correto?
Errado...
Hoje, tenho 36 anos. Ainda acho inacreditável o fato de estar envelhecendo, e embora não devesse me orgulhar, envelheço bem e envelheço mal; bem porque sou uma eterna criança; e mal, pela mesma razão. Também minha aparência não revela a idade que possuo, muito embora seja um prato cheio para comentários machistas e sexistas disfarçados de elogio: "Nossa! você parece muito mais nova". "O quê? Você já se divorciou?" "O quê? você já se casou?" "O quê? Você assistia ao Palhaço Bozo REAL?"
E por aí vai.....
Mas, voltando: ainda hoje me vejo como aquela menininha que sabia muito bem o que queria mas, por medo, sempre expressava a sua segunda opção, uma vez que ela também era boa. A segunda opção a faria alegre...a primeira, feliz. E ser feliz é difícil, amedrontador: ser feliz é a força plástica da força plástica; como saber felicidade para quem sempre se conformou com a alegria?
Preciso escolher entre o boneco bozo e o vinil do Juninho Bill, e não sei por onde começar.
Escolher o Palhaço Bozo é correr o risco do fracasso.
Se aos cinco essa sensação já era desesperadora, quem dirá aos trinta e seis, quando à vista de um Trem pode ser a última estação?
A última chance.
Sofia de Buteco, março de 2022.
#ForaBolsonaro
*Imagem domínio público.