*tela de Judith Lauand
O Sofia de Buteco (assim mesmo, com u) nasceu em função de uma desilusão amorosa no ano de 2009. Aos poucos, depois do "drama queen" sem o qual não haveria alavancado este blog (porque no fundo no fundo todo mundo gosta de uma boa desgraça, ou, reconhece-se na desgraça do outro...), passei a abordar outros assuntos, criando uma espécie de diário ficcional.
No decorrer desse processo fortuito, acrescentei uma generosa colherada de resenhas de discos, filmes, livros, além de criar pequenas colunas que buscavam interagir com meu público virtual. Sim,querido leitor: houve um tempo em que havia por aqui certo público, curiosos em busca de curiosidades.
Com passar do tempo, o ingresso na vida adulta, as obrigações, as desilusões ...(muito além das de ordem "afetiva") bem! perdeu-se um pouco do tempero. Passei a escrever cada vez menos, ora por preguiça, ora por procrastinação, ora por ter outras coisas que fazer. Mas a falta está aberta em algum lugar do "eu", a vontade de escrever que se confunde e se entrelaça com a falta de pingos nos i´s, falta do que dizer, falta do que sentir, e até mesmo falta do que reclamar.
Existe, dentro da dor que é sentida, um pequeno grau de "dor" benéfico que nos move a sublimá-la em forma de arte. Para alguém como eu, que não é artista, um blog foi ao longo de muitos anos o suficiente para tal efeito.Por fim, a ausência de ideias e de palavras. O confronto solitário com a vida real, com a vida adulta: terminei a faculdade, terminei o mestrado, terminei algumas fases, terminei - e com muito pesar- algumas amizades. Comecei um relacionamento seríssimo, continuei fisicamente na mesma cidade, mas com a cabeça e o olhar em tantos outros lugares, a vontade ainda não realizada de ir-me embora daqui, cada vez mais desenhada, delineada, almejada.
Cheguei a conclusão de que estou, neste momento, como estava há exatos dez anos, só que ao avesso.
Há exatos dez anos eu chegava nesta cidade sem amigo algum. Havia perdido, no ano anterior, uma paixão platônica que movera algumas montanhas e maomés. Terminei o colegial e comecei um namoro com um dos meus melhores amigos, enquanto cultivava ainda uma série de amigos eternos, desses que nos desdobramos para manter, ainda que por meio da escrita (na época, cartas; hoje, facebook e whatsapp). Tinha comigo a dança e uma vocação religiosa discreta, dessas que a qualquer momento poderia me levar a um mosteiro de clausura.
Pelo menos disso me safei, amém.
Tinha muita esperança e vitalidade, porque encontrava na minha dor um pequeno pedaço de. que me impulsionava a qualquer coisa e lugar.
Chegando aqui perdi um irmão, de morte-morrida também. Foi quando então o meu mundo caiu por alguns meses, sem chances de reanimo por respiração boca-boca ou choque via desfibrilador. Foi do caralho.
No meu aniversário de dezenove anos, assisti às aulas do cursinho pagado por meus pais. Desde aquela época queria nada da vida, o cursinho era uma forma lícita de me manter com os olhos bem abertos. Caminhei, após a aula, até uma igreja onde conheci um padre muito jovem e reencontrei uma prima de minha mãe. O padre, tempos depois, apresentaria-me um mundo novo de aventuras; a prima da minha mãe, um melhor amigo. Foi o dia das descobertas, embora eu, imersa numa grande tristeza e falta de sorte, além da saudade da minha terra e dos meus, não pude me dar conta. Mas sim, a vida mudara ali, naquele 10 de novembro de 2004.
Os anos seguintes foram intensos e felizes.
Amizades, amores, descobertas. O curso de Letras, nunca antes sonhado, tornou-se um presente que me acompanharia até os dias atuais. Muitas viagens pelo interior de minas e pelo interior de mim; dois namorados, muitos ficantes, um ficante-namorado-namorido-marido-namorido. Muitos sonhos coletivos, poucos individuais: queria ainda salvar o mundo, rebelando-me em idade tardia, já na casa dos vinte....(porque aos 15 só me interessava o Hanson, a dança, e os amigos de sempre).
Esta felicidade (sim, felicidade) acompanhou-me por muito tempo, deveras. Oito anos, possivelmente.
Hoje, às vésperas de outro aniversário, vejo-me novamente só em uma cidade desconhecida, cercada por estranhos e sem muitas expectativas. A felicidade romanesca tornou-se felicidade em microcontos. Gênero em ascensão, aliás, mas que exige do seu feitor inteligência e habilidade que não possuo. Pequenos momentos de riso diário; uma festa a cada 30 dias, um barzinho a cada 15; vez ou outra uma entrevista de trabalho frustrada ou a tentativa do doutorado.
Atualmente trabalho em uma escola do estado. O que antes era um pesadelo ainda está longe de ser sonho, mas o intermédio não deixa a desejar. Não sou apaixonada pelo que faço, mas sim pelos meus alunos....uma paixão ora correspondida, ora não, como toda boa paixão deve ser. Meus alunos são muito inteligentes e vivos; graças a Deus conseguem driblar com facilidade as amarras do sistema educacional falido do qual fazemos parte. Tenho plena convicção de que das minhas três turmas sairão, antes de mais nada, gente de bem; depois, com um pouco de esforço, professores, bailarinos, ginecologistas, designers de moda, economistas, pais de família, eletricistas, desenhistas, escritores, advogados, etc etc. Dentro da dor que é gritar cinco horas e vinte minutos por dia, existe para além disso um riso entre os dentes, desses que saem como anedotas. Enfim, não é mais o fim do mundo.
Em outras palavras, gosto muito do que faço hoje; mas quero fazer outra coisa pelos próximos dez anos. Da vida que tenho hoje eu só manteria, na vida posterior, a família, o companheiro, o cão e a vontade de escrever. Os amigos de "sempre" e aqueles que ainda ficaram por aqui.....embora de forma muito indireta....talvez cinco ou seis pessoas. O mundo de aventuras que me foi apresentado naquele novembro hoje não mais existe; nem em espaço, narrativa ou personagens. Todos se foram. O último se foi há alguns meses, causando-me imenso desconforto.
Pior do que terminar um namoro é terminar uma amizade verdadeira.
Apesar disso, criamos sem querer mecanismos de resistência que nos fazem sobreviver.
Sobreviver.
Gosto de chegar à casa dos meus pais e participar das discussões familiares. Gosto dos meus pais....gosto de viajar com eles, da companhia que eles me proporcionam. Gosto das aulas de natação, ainda que saiba que nunca aprenderei a nadar. Não só pelos corpos atléticos dos instrutores (todos lindíssimos, com todo respeito às namoradas, esposas, ou namorados e esposos, também ao meu esposo-namorado), mas pela ideia que faço do dia em que der a primeira braçada (ou seria pernada?). Gosto de filmes, meu universo paralelo. Amo meu namorado e gosto da história surrealista que construímos juntos; do flerte ao descasamento. Gosto quando estamos juntos, abraçados e rindo de qualquer coisa estúpida. Gosto do seu beijo, e das saladas e massas que faz com maestria. Odeio as nossas brigas, odeio sua veia jugular interna e seu acesso de raiva bipolar. Mas gosto também da paródia que se torna tudo isso ao fazermos as pazes. Alegra-me sair com duas ou três amigas; uma porque me diverte, outra porque a divirto; a terceira....bem, a verdade é que não sei porque gosto da terceira. Também é bom sair de vez em quando com um grupo de amigos, para conhecer um pouco mais o outro lado do atlântico. Fui à São Paulo três vezes este ano, sendo que em uma dessas viagens visitei quase todos os meus amigos de infância e adolescência. Acho que foi a última vez em que me diverti sóbria. Depois daquela viagem, também fui ao Rio de Janeiro e saí alguma vezes por aqui, mas a sobriedade nos passou longe, acenando-nos com óculos escuros. "É preciso embriagar-se".
Adoro suco del Valle. Melhor que isso, apenas cachaça sem limão.
E gosto muito de barulho de ventania.
No mais, a vida anda bem tediosa. Estamos às vésperas das eleições presidenciais e de um colapso ambiental: não há água e nem cura para o Ébola. Em tom de protesto, chego em minha nova casa, deito no sofá e durmo. Já de madrugada, acordo para novamente dormir. Quando tenho sorte, sonho - caso não esteja calor, pois quando está, prefiro continuar no sofá à espera de quem me busque com um guindaste.
Apesar do medo de água, descobri que não tenho medo de dirigir. Gosto da velocidade e da ideia de conduzir, afinal eu...non ducor duco (minha próxima tatoo, provavelmente no pé, em homenagem à cidade de São Paulo, a que será feita em São Paulo, aos 30, quando estiver me mudando para a cidade onde viverei pelos próximos dez anos, possivelmente no nordeste).
Entre coisa e outra, o plano é encerrar o ano aqui mesmo. Depois, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Timor Leste. Doutorado ou aulas em colégios particulares, institutos, ou editoras (revisão, redação, tradução, essas coisas que não exigem grito). Uma viagem em casal, tipo lua-de-cheetos para a Europa; um intercâmbio, daqui a dois anos, para a Irlanda (três ou seis meses). Daqui a cinco anos, um livro; daqui a sete, um filho. Daqui a dezessete, dezessete anos, o tão sonhado diploma em medicina, como a menina da reportagem lida ontem, no momento de insônia. Tudo bem se for uma vida curta e de poucos amigos...mas espero, ao menos, poder voltar a dançar algum dia (incrível como sempre sonho com isso).
Ah! também gosto de comer arroz com grão-de-bico.
Uma parte das pessoa do mundo têm vidas medíocres e frustradas;
Outra, posta fotos no facebook e no instagram das viagens com a turma da empresa e dos bons restaurantes onde estiveram, demonstrando pretensa felicidade da qual duvido.
Conheço poucas pessoas felizes de verdade.
Conheci um rapaz bastante feliz, mas ele faleceu há três semanas em um acidente automobilístico. Foi meu amigo. Há outra também, uma menina, mas ela tem seis anos e acabou de ganhar outra irmãzinha. É minha prima.Vestiu-se de princesa no aniversário de cinco anos, com toda a decoração elaborada pela mãe.
Maior felicidade que isso?
Só aprender a nadar
ou reatar uma amizade desfeita.