Era também sexta-feira quando faleci pela primeira vez, a fim de ressuscitar no vigésimo oitavo dia (afinal de contas, só o filho de Deus conseguiria a proeza de morrer e ressuscitar tão rapidamente...).
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Por coincidência, ressuscitei no dia do meu aniversário de 21 anos: foi a minha primeira lembrança, ainda que não tão concreta, mas que marcou a minha libertação do cárcere em que me encontrava.
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"Toda canção de liberdade vem do cárcere" - alguém escreveu, após libertar-se de uma profunda tristeza.Já no meu caso, meu cárcere fora marcado pelo extremo oposto da tristeza: a euforia, em plenitude.
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Era dia 13 de outubro de 2006, estávamos na cidade de Mariana. Foi lá na cidade dos meus sonhos que conheci, não pela primeira vez, o que era a morte; de qualquer forma, o inferno sim, eu conheci lá, como disse a meus amigos que me acompanharam naquele devaneio profundo "Inferno é estar morto quando vivo; é se dar conta de que as pessoas que amamos não acreditam em nós".
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Quantos labirintos e rodeios pra se dizer algo da qual não me envergonho, de modo que é hoje marca unânime do meu calendário existêncial: naquele 13 de outubro, dia de chuva, descobrimos todos que eu havia tido uma crise de bipolaridade, na sua expressão eufórica.
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Àqueles que desconhecem, ou banalizam o termo, bipolaridade é a ponte que pode conduzir da euforia à depressão numa fração qualquer de tempo. Geralmente, trata-se de um grande intervalo de tempo, em que depressão e euforia oscilam, e que muitas vezes vêm acompanhadas de crises psicóticas, crises de identidade.
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Já havia anos que eu carregava comigo alguns traumas não expurgados: falecimentos de dois entes queridos, mudanças bruscas e inadaptações....(deixara minha cidade natal, que tanto amava; meu Ballet, meus amigos, meus trabalhos voluntários, etc...). Na mesma época, lembro-me que além das disciplinas do curso de Letras - curso que detestava - eu era babá de uma moça linda, lindíssima e especial.
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Foi quando naquele período, marcado por muito stress, iniciei um namoro a principio conturbado...(o tal ex, a quem dediquei às primeiras postagens do nosso Sofia!) e acredito que tal emoção - essa de amar e ser amada - tenha sido então a válvula de escape para o meu probleminha.
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Digo probleminha, porque todos nós os temos: desde uma unha encravada, passando por uma queda permanente de cabelo, chegando a uma diabetes.....Pois bem; o meu probleminha fora aquele, querido leitor, uma crise de bipolaridade, no dia 13 de outubro de 2006, numa noite, talvez de chuva, em um seminário religioso de Mariana.
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Os sintomas foram a minha fala alterada....o meu exibicionismo exacerbado...a minha falta de timidez...(porque sim, querido leitor: quando me encontro entre desconhecidos, sou profundamente timida). Por fim, meu estado eufórico alterou-se de tal forma que perdi quase por completo a minha sanidade: entrei num jogo de máscaras, ora Bispo, ora profetiza, ora boneca, ora Emília - sempre eu.
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E tudo isso há exatos 4 anos.
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Uma criança de 4 anos já é capaz de entender muitas coisas, como por exemplo, a morte de um ente querido; o nascimento de um irmãozinho; o amor que unem os pais.
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Eu, naquela condição, mal compreendia as coisas simples da vida; a minha única certeza era a de que estava no inferno, porque eu gritava por dentro, mas poucos me ouviam, poquíssimos.
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Lembro-me de uma freira, com um olhar de extrema compaixão....e de meu pai, sempre a meu lado, narrando-me histórias em que me fazia rainha, Joana, especial. Já no hospital, nunca esqueço de ouvir meu pai cantando uma cantiga da sua infância, cujo refrão era "por caridade, por caridade..." - falava de uma menininha que ia brincar. Eu era a menina, e a caridade era tudo o que não queria.
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Mas existe sim esse destino estranho que entrelaça os homens, como numa teia: semanas antes da crise, Eu havia procurado um psiquiatra para que me ajudasse com o meu excesso de ansiedade (porque isso sou eu, incondicionalmente). Ele me deu um remedinho. Quando fizemos, eu, meu ex namorado e meu grandes amigos, a tal viagem ao seminário de Mariana para um curso, já em crise, há quem conte que ao arrumarem minha bolsa encontram o "remedinho" para ansiedade com o telefone do tal psiquiatra: meu querido Dr. Caramujo! (Acho até que foi a Julya quem me contou...)
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Levaram-me para o hospital de Mariana, enquanto um amigo Parde - o qual eu consagrara bispo - ligava insistentemente para Dr. Caramujo, que a princípio não queria me socorrer.....Mas eu, teimosa e intuitiva que sou, segundo meu pai, reneguei todos os médicos e MÉDICAS, dizendo apenas: - Só saio daqui com Dr. Caramujo! (isto porque mal nos conheciamos. O que nos unia era somente o sobrenome do seu pai, o qual é o mesmo que o meu; e, a estranha coincidência de ter encontrado seu nome circulado na lista telefônica de minha casa, no dia em que havia decidido procurar um psiquiatra - sendo que, em minha família, nunca haviamos precisado de um!).
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Meus amigos...pobres....não entendiam nada....nada.....e o amor que tinha por eles era tão imenso, que sentia-me extremamente só, estando ali, tentando lhes falar....enquanto eles nada entendiam; não compreendiam o que acontecia com a Amanda que morria.
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"Era o inferno, era o inferno" - eu pensava.
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Não, Amanda; não era o inferno, mas sim...uma nova vida que começara.
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Durante muito tempo eu não compreendi o que me acontecera; tranquei o curso de Letras devido aos efeitos colaterais dos remédios todos....senti profundo ódio de muitas pessoas, hoje tão queridas, ou metade queridas, porque me senti abandonada por todas elas. Sentia que era o fim de qualquer coisa muito forte.
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Tempos depois, como disse, no vigésimo oitavo dia, eis a minha ressurreição: uma festa tosca de aniversário, com a presença de alguns tios, meus pais, meus primos-amigos, meu ex, e uma torta horrível de limão, passando-se por bolo de chocolate!
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O problema é que eu amooooooooo bolo de chocolate!!!!!!!
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Foi naquele momento, o de saborear o limão da torta, que dei por mim: "Amanda que é Amanda não come torta de limão...OPS! PERA AÍ GENTENNNN:....ACHO QUE VOLTEI!".
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Quatro anos se passaram, e hoje entendo muitas coisas.
Quatro anos se passaram, e hoje entendo poucas coisas.
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Entendo que muitas das pessoas que senti ausentes naquele momento, na verdade estavam presentes e me amaram a seu modo: porque o amor, como a maioria das coisas humanas e sem explicação, manifesta-se de formas diferentes em pessoas diferentes.
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Descobri que ter trancado o curso não fora uma perda de tempo: usei tal período para fazer nada, e depois disso, nunca mais tive tão brilhante oportunidade - fazer nada. Namorei muito...muito.....domingos na rede.....namoricos em plena terça-feira! Sabe leitores, as pessoas, ainda que se magoem muito em um namoro, sempre nos deixam marcas de felicidade quando o relacionamento é verdadeiro. Isto é vida.
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E quando saí daquele turbilhão de imagens, ícones, espíritos, Amandas....acho que tornei-me uma pessoa mais sensível; sobretudo, sensível às dores alheias....e talvez, se não tivesse visto esta "morte" de perto, eu nunca seria quem sou hoje, embora tão pouco eu saiba quem seja. Quero dizer que eu seria uma Amanda a menos: uma Amanda a menos em mim.
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Queria citar todas as pessoas que me foram caras, mas seria injusto, porque não me lembraria de todas....mas vou tentar resumir: Meu pai (em primeiro lugar), minha mãe; Roni, Gilberto, Mara, Élida, Julya (in memoriam....), Pe. Wander Torres Costa..............(e muitas reticências.......), a Pastoral da Juventude como um todo (principalmente ao grupo JA, não é Fernandinha??).
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Leandro, Patrícia, Tatiele, Josélio; Priska, Silvinha; o Reitor da UFV e o centro espírita onde me levaram; a casa de umbanda onde também me levaram; às missas celebradas pelos meus amigos Padres....Parde Bozó, ex seminarista Leandro. Padre Walter.....Tia Lurdinha, Kamilinha e sua mãe.....Mariana (nã) .....Fernanda "Matipó"....Rebeca.....Nossa...tanta gente.....
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Minha família.
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Meus vizinhos (alguns) - que me difamaram. Agradeço por terem feito de mim uma pessoa mais forte.
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Célia....que mesmo à distância fez seu papel de mãe-amiga.
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Bruno, Isaura, Cinthya.
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Aos meus ex patrões, que duvidaram da minha capacidade em ser amiga de minha eterna Lícia.
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À Lícia, minha amiga....que me apresentou Monteiro Lobato, hoje, uma das minhas linhas de pesquisa na Literatura.
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À Emília, minha boneca eu.
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E ...um parágrafo especial sobre Dr. Caramujo.
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Aquele homem jovem e bonitão disse-me uma vez que eu nunca mais poderia beber, dormir tarde, livrar-me daquela vida regrada que não era a minha. Pois bem: com o passar do tempo....um remedinho a menos, uma dosagem a menos.....hoje, só me resta o Lítio meu de cada dia.
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Contrariando às expectativas de Caramujo e de meus colegas de bipolaridade, nunca mais tive outra crise EM QUATRO ANOS!
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E quantas coisas me aconteceram.......perdi uma grande amiga (Julya), rompi dois relacionamentos amorosos; e, ao mesmo tempo, conheci muita gente....fiz muita coisa...viajei muito.....passei muitas noites sem dormir e fui a muitas festas com bebida liberada!
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Tudo isso, porque um dia Caramujo me disse..."Amanda, nunca se esqueça: Você teve uma crise de bipolaridade, talvez você tenha bipolaridade....mas você não é bipolar".
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Naquele mesmo dia, desvinculei-me de todas as comunidades de orkut cujo título "Eu tenho TBH" traziam relatos de vidas de pessoas desequilibradas e infelizes em função da doença. Não era aquilo que eu queria pra mim.
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Sou ansiosa. Sou intensa. Sou chorona. Sou mimada. Sou enroladíssima. Adoro dar showzinhos para chamar àtenção (coisa de bailarina, sempre....). Sou atrasada. Sou confusa. Adoro um rivotril. Falo demais. Brigo demais. Sou excessivamente nervosa. Tenho intuições constantes. Tenho "insights" constantes. Penso muito rápido, em muita coisa ao mesmo tempo. Sou ciumenta. Sofro como mexicana. Fodo-me nos relacionamentos. Sinto saudade do Cleiton, todos os dias da minha vida. Estudo Literatura. Gosto de dançar. Gosto de cinema. Gosto de ler. Gosto de caminhar. Gosto de rir. Gosto de girassóis. Gosto da casa antiga da vovó.... - mas isso tudo sou eu, Amanda, independente da bipolaridade.
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Bebo, Fumo, não uso drogas; Caramujo quase me mata, mas assumo meu risco, porque aprendi a me conhecer. Não permito que meus colegas de bipolaridade convençam-me de que não posso ter uma vida normal: eu tenho uma vida, a minha, e isso basta.
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Identifico-me com os bêbados, com os desequilibrados, com as crianças, com os criminosos, principalmente com os jovens que vivem em regime de prisão. Identifico-me com uma série de pessoas que vivem sem voz, talvez no inferno em que eu estava, cárcere obscuro de mim mesma.
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Caramujo disse-me uma vez: "Amanda...nem parece que você teve bipolaridade! Acho que você é uma privilegiada; enquanto os jovens da sua idade viajam para o exterior, você fez uma viagem de vinte e oito dias para dentro de si mesma."
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Nunca tive um efeito colateral usando Lítio: uma queda a mais ou a menos de cabelo, de peso, de qualquer coisa.
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Este depoimento não tem intuito algum de me auto promover. Como esta bagaça de Blog é meu, posso e devo escrever o que bem quiser...Dessa forma, quero registrar a cada ano que passa a minha felicidade em estar viva e ter recebido de Deus, acredito, uma segunda oportunidade de viver....e viver plenamente.
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Sabem leitores, depois que voltei daquela viagem, tudo o que vivi, o fiz de modo mais intenso: as desilusões que tive foram mais intensas.....mas também os amores mais intensos; ampliei a minha capacidade de amar.
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Os textos que escrevi, mais longos e mal pontuados; porém, ainda assim, mais profundos e criativos.
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E se vale a pena?
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Viver.....esse labirinto diário de ir- vir, encontrar-desencontrar, perder-vencer, bucar-achar, sonhar-acordar, Morrer.....
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Ao sair do cárcere, até a morte passa a fazer sentido, porque a vida se torna duplamente vida: a que fui e a que sou.
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Feliz Aniversário de 4 anos, Amanda...
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Porque "Toda Canção de liberdade vem do cárcere".
your life is brilliant and I love you!!
ResponderExcluirLendo e Aprendendo Com Sofia de Buteco!
ResponderExcluirNão sei se deveria, mas nesses anos todos a única coisa que fiz questão de guardar na memória do dia de sua morte foi você cantando, com sua linda voz muito bem postada: "Eu sento na água... [não lembro o resto]".
ResponderExcluirLamento muito não ter podido te zoar naquele dia, mas te agradeço por me dar um verso e uma melodia e uma voz que sempre me lembro com um sorriso farto, quase uma gargalhada e que quase saiu no meio daquele povo assustado. Creio que se assim fosse seríamos dois mortos. Você por uma crise. Eu pela insensatez.
Não fique com raiva de mim, esse é meu jeito de amar que você afirma no texto ter compreendido... sorte minha... né?!?!!
Feliz aniversário... e vê se pára de beber... sem me chamar!!! Qs cara!!!
"Amanda que é Amanda não come torta de limão...OPS! PERA AÍ GENTENNNN:....ACHO QUE VOLTEI!".
ResponderExcluir...Como esta bagaça de Blog é meu, posso e devo escrever o que bem quiser...
Essa é a Amanda que eu tenho a sorte de conhecer: intensa, inteira, profunda, total...