segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Nascida em Primeiro


"Quem vive no medo precisa de um mundo pequeno, um mundo que pode controlar. Nosso mundo, meu e de Farida, tinha agora o tamanho de um navio. Para mim aquele era apenas um passageiro momento. Para Farida aquilo era o imutável cumprir de um destino."

(Terra Sonâmbula - Mia Couto).
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- Meu bem! existir se escreve com "x" e não com "z"...- disse ao celular uma daquelas mulheres lindas e loiras, cuja trajetória era a mesma que a nossa, dupla narrante desta crônica. Evidentemente, o meu ponto de vista não pode ser anulado destas linhas, até porque eu aceitei, quase sem escolha, o desafio da escrita: exercício que me vem nos momentos de má digestão ou nos dias incertos. Mas, ainda assim, falta-me um par, um novo par: bons textos só podem ser aperfeiçoados quando tocam o coração do outro, fazendo ecoar também o não dito, as lacunas que só um bom leitor virtual poderia preencher, seja por sagacidade ou destino. Que seja! Há textos escritos o tempo todo, em todas as rotas, para todos os viventes, sem reclamar por quem os cerque ou vivendo à mercê de quem os contemple como seu. Certo é que não existe texto sem intencionalidade, como não há vida à deriva, sem uma boa dose de fado: escreve-se ao nascer, pontua-se ao longo da vida até a chegada das reticências finais... Mas sobre este enigma , escapam-nos todas as traduções e desatinos, visto que de incertezas já nos bastam os acontecimentos habituais e é sobre estes, tão menos interessantes, que me proponho a escrever junto a vocês, caso aceitem o desnudar que lhes proponho necessário.
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Fim...começos...que nos importa? Comecemos pelo meio - eu sempre escolhi o meio das histórias. Quando mamãe contava, pela centésima vez, a tragicomédia dos três porquinhos, minha ansiedade se centrava no momento em que Heitor vê sua casa derrubada pelo soprar do Lobo..."A minha casa eu fiz, sozinho e terminei pra morar nela feliz, mais feliz do que um rei!" - acreditava Heitor, no auge da sua inocência, inocência de quem não conhecia os outros lados da vida, a segurança que os tempos de cólera nos obrigam a cultivar. Sentia pena de Heitor...(ou será de Cícero? não me recordo muito bem), sentia compaixão porque compreendia, já tão pequenina, que para certas coisas na vida é preciso um pouco mais que vontade, amor, dedicação: é preciso pés no chão, é preciso secundarizar o brilho das estrelas, por mais sedutoras que estas sejam, ainda que nos cantem como sereias. Na vida é preciso nascer primeiro, nascer muitas vezes, para só assim sabermos o que nos faz homens e mulheres (ou porquinhos).
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Tudo isso pra nada...meu texto engasgado custa a sair...custa a se materializar em verbo. Porque a protagonista sou eu, mas poderia ser você, novo leitor virtual, que aceitou o meu convite e agora se desnuda.
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Vamos aos fatos.
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Antes daquela mulher surgir em nossa frente, observava uma árvore - já velhinha - que habitava a trilha com a qual nos deparamos diariamente. Comovida, tentei me translocar para dentro daquele ser, imaginando quais seriam as capacidades vitais de uma árvore...se haveria paixão na vida daquele ser vivo, que se faz sombra, se faz colo, se faz refúgio, mas se faz silêncio, não dando margens ás vontades que poderia vir a ter - ainda sendo árvore. Velhinha, porém cheia de encantos, não me surpreenderia se aquela árvore guardasse consigo um grande amor, uma grande angústia, uma vontade absurda de atravessar aquela reta e se fixar ao lado de um Ipê amarelo, o qual nos abrigava aquele momento.
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Mas isso não seria impossível? Uma árvore que escolhesse por vontade não ser o que é, desviar-se do fatídico destino de apenas ser sombra, mote de poesia, abrigo para os passarinhos que lá estão, ainda hoje. Senti pena de uma série de outras pessoas, outras dores, outros desencontros que se fixam como árvores e deixam passar as oportunidades que a vida lhes dá. Pensei numa série de transeuntes, pensei naquela moça loira, Seria feliz? Pensei no namorado daquela mulher - o que existe com z e não x, mas ainda assim esforça-se para "ezistir".
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O que nos faz existir?
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Acordamos diariamente às 6:00 da manhã. Trabalhamos, estudamos, almoçamos, escrevemos artigos, des-escrevemos uma série de outras coisas que precisam ser escritas...Mas e quanto a nós? Qual o tempo que dedicamos para a escrita da nossa história, seja esta uma novela, um conto, um romance pícaresco, um singelo cartão postal? É tudo tão simples, mas o medo nos faz ampliar aquilo que é óbvio, aquilo que poderia ser doce, mas faz-se amargo pelo medo de não tentar.
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Eu, que de árvore só tenho a vontade de observar os passantes, recuso-me a essa espera. Hoje, contudo, compreendi que certas mudanças são necessárias, para que possamos transitar entre o mundo do lúdico para o real: A minha casa sou eu quem construo, ainda que exista em mim metade Heitor, metade árvore, metade medo.
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Sim: eu é quem tenho tanto medo, quase uma abstração do medo, a ideia de que nada vai dar certo, então inibo o meu potencial de tentar, de ir além...de trocar a minha sombra inóspita por um pouquinho de cor (daquele Ipê por quem me apaixonei). Esta é a metade da história: o começo e o fim não importam; porque o começo não é modificável...e o fim....nunca se saberá com certeza o que há de ser, ainda tendo nascido, o fim, muito depois de nós.
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Que tal um lugar distante, para que possamos respirar "buenos aires", recuperar a energia que o amor também exige? Qualquer lugar no mundo seria insuficiente, quando não se sabe o que quer...das Ilhas Canárias a qualquer outro pedaço de chão, quem sabe...das Ilhas "Pora Pora"(pertencentes ao grupo das Ilhas de Sotavento do arquipélago da Polinésia Francesa...provavelmente, um lugar onde nunca estaremos, árvore e eu, por nossas raízes e obrigações atuais: temos que acordar tão cedo, com datas pontuais).
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Mas essa é a minha versão da história. Talvez o amor seja apenas isso: segurança. Ainda que eu tenha a certeza de que aquela árvore provavelmente vai sofrer, vai se corroer infinitamente até fazer nascer os melhores frutos e flores....pode ser que seja tão tarde, você não vê?
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Porque também os Ipês, tão exuberantes, morrem...perdem a cor, o amarelo que um dia foi novo.
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Estou disposta a mudar a minha vida, a ser menos Heitor, menos árvore, menos espera. E quando isso acontecer, leitor virtual, em qual lugar dos nossos sonhos você estará? em qual Ilha desconhecida, qual pedaço de tronco, qual ponto de ônibus?
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A você, meu amado Heitor, dois conselhos:

"Construa primeiro a sua casa: não de palha, não de vento...Mas construa -a sozinho, com cimento e tijolos. Já o amor, este é pra ser construído em par: é preciso mais que amor, é preciso segurança, é preciso projeto, é preciso dinheiro, é preciso autonomia, e embora isso leve tempo, quando se está em par...o medo de um é a coragem do outro e vice - versa. Graças ao enigma das coisas, nem você e tampouco eu nascemos árvores, meu bem: Há tantas outras coisas que nos movem, além das obrigações do dia a dia...que se fosse tão fácil, tão seguro, nós não teríamos porquê duvidar (não será a dúvida um sinal de força?).
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Ainda assim, se queres voltar à comodidade de tua casa de palha, vá para um lugar onde o vento não sopre, e crie lá as suas raízes, longe das árvores tristes, longe dos Ipês que te seduzem, caro Heitor."
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Esta história durou cerca de meio minuto. Ao desligar o celular, a menina - minha "conhecida", abriu-me um sorriso como quem diz "...que dia bonito esse, não?". E assim, sucessivamente, muitos outros dias bonitos hão de nascer em outras partes do mundo, e junto deles, a possibilidade de novos encontros e oportunidades: novos e bons ares, desses que ora nos lembram, para que antes se dê o solitário esquecimento daquilo que ainda pode ser, quando ultrapassamos a humana covardia.

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