*O dia em que a princesa virou o espelho do avesso. Foto de seilacomch.
...
A VAIDADE DO REI
Não confie na vaidade, enganando-se a si mesmo; pois a vaidade será a sua recompensa.
Jó 15:31
Jó 15:31
(...da série "Sete pecados capitais").
...
O rei nu desfilava pela cidade encimesmado quando descoberto pela criança. Não falo aqui do tolo Rei de Hans Christian Andersen, senão daquele que habita algumas de nossas janelas, sem exceções. Neste caso, tratava-se de uma mulher-rei, cuja vaidade levava-a a loucura de quando em quando.
....
Sua vaidade devia-se ao dom que recebera pelos deuses quando ainda muito nova; o de interpretar o ser humano através da escrita. Linhas escritas por um estranho eram capazes de desvendar-lhes a alma ao serem lidos pela mulher que, não se dando conta de tal dom, usava-o sem muitas pretensões, apenas por casualidade ou vontade de conhecer o outro. Comparar-se com outras pessoas; ao saber o que a memória do outro resguardava, era como se ampliasse para si um pouco de sua história, vivendo também aquilo que não era seu, aquilo que sua fortuna a impedia de viver.
....
Então a mulher, sempre que podia, roubava pedaços de linha a fim de
decifrar a memória e o presente daqueles que escolhia: homens,
mulheres, crianças, gestantes. Decifrava a todo pedaço de registro, toda significação textual, e às vezes verbal; de um bilhete de boas vindas a um coração desenhado, de forma mal feita, sobre o segredo de um ex casal.
....
Foi quando então deparou-se com algo inusitado.
....
Havia uma caixinha de coro que era de sua avó, a que falecera há dois anos. Ficara com a caixinha porque nela estavam guardadas as infâncias da avó, mãe e neta. Sempre que chegava à antiga de casa de campo, revolvia a caixinha em busca de novidades, uma foto ou uma conta ainda não paga; um cartão enviado para o dia das mães, uma carta não colocada no correio, uma vela de batismo ou cordão umbilical por ser enterrado.
....
Ao roubar a caixinha pra si, após a morte da avó, deu-se conta de que estava vazia. Uma pessoa da família já havia possuído todas as lembranças, restando apenas a caixa vazia, que ainda assim muito lhe valia. A caixa foi um presente dado a sua mãe; esta que, ao romper com tal galanteador, entregou-a aos cuidados da avó que a fez sua. A vaidade roubou a caixa vazia.
....
Certa vez, encontrou uma inscrição feita no fundo da caixa. Mal podia ser lida: aparentemente, o ano de 1948. Por mais que se esforçasse, por mais que destinasse aquele símbolo toda a sua energia de percepção, não conseguia desvendar a significação registrada, porque não havia ali mais viventes daquela história secreta: a mãe, que nascera no ano de 1953, primeira filha dentre oito irmãos, era o único registro vivo da avó. Mas nascida cinco anos depois da data monumentalizada na pele de couro, tornava-se tão inútil quanto a verdade encoberta.
....
Qual a verdade encoberta? O que acontecera de tão importante na vida da avó, para que fosse registrado num pedaço de pele? Estaria esse fato interligado a tantas outras vidas, seria a força motriz da cadeia de nascimentos e mortes daquela família?
....
Nunca saberia. A sensação do silêncio mortificava-lhe a alma. A certeza de que tamanho dom, por vezes mal aproveitado, não serviria de nada. Nunca mais. A certeza do nunca a aterrorizava por meio de sonhos grotescos e a chegada da solidão: estava só.
...
Vencida, recolheu a todas as lembranças que antes a caixa cercava. Visitou a todos os tios, primos, afilhados e aparentados, roubando-lhes a memória de cada registro, foto, linha escrita em papel de pão; aprisionou-as naquele invólucro, colocando fim na única memória que não poderia lhe pertencer ou controlar.
....
- É grande assim a tua vaidade? - perguntou-nos a criança.
....
Durante dois anos, estórias foram aprisionadas na caixa de couro, junto de fotos, versos, simpatias, modinhas, orações, relicários, velas, contas, listas, cordões umbilicais, remédios, convites de casamento, convites de batismo, convites de aniversário, "santinhos" de óbito, aliança de casamento, foto de um homem cujos olhos muito claros não o faziam da família. Tudo foi jogado fora, em água corrente, próximo à casa de campo hoje registrada em meu nome.
...
Ainda sonho com o ano de 1948.
....
Muitas vezes paramos no tempo, nos deixando aprisionar pela magnífica curiosidade que cerca os nossos antepassados e a nós mesmos.
ResponderExcluirAdorei seu blog, sigo-o
Abraços