"Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra."
(Guimarães Rosa)
Falar da Julya é sempre difícil, porque é também falar de mim e das nossas conversas sobre a vida e o inexplicável; conversas sobre sexo, morte, Teologia da Libertação, Hebert, Julya e também Julya, Hebert, ele e eu.
(Guimarães Rosa)
Falar da Julya é sempre difícil, porque é também falar de mim e das nossas conversas sobre a vida e o inexplicável; conversas sobre sexo, morte, Teologia da Libertação, Hebert, Julya e também Julya, Hebert, ele e eu.
Liberdade é, a meu ver, a palavra que define melhor esta minha amiga; liberdade de escolha e de se fazer sempre presente na vida do outro; liberdade de apostar tudo no lado bom da moeda; liberdade com o olhar...olhar que liberta, olhar que ainda me liberta, apesar deste ter me cativado para o todo sempre...
Conhecemo-nos numa missa na Paróquia São Silvestre. Julya era, até então, aos meus olhos tão necessitados de rótulos e superficialidades, uma patricinha chatinha: sempre vestida de rosa e acompanhada pelas amiguinhas não menos frescas. A menina não me inspirava muita simpatia; mas, algo me chamava atenção na moça, sendo este algo uma corrente assustadora que ela trazia consigo no braço. Julya era carismática e tornara-se carismática após um longo período de militância na Pastoral da Juventude. Na época, isso não fazia muita diferença para mim, já que estava ainda num processo de “namoro” com a Pastoral da Juventude....mas, a corrente me intrigava e um dia perguntei a ela o porquê de tal adereço, tão disforme e que em nada combinava com suas roupas pinks e sua tez rosada.
Tratava-se, se bem me recordo, de uma corrente de uma tal congregação chamada “Escravas de Maria”. Julya ingressara nessa congregação, leiga, e a corrente era um símbolo de compromisso para com Maria, um despojamento tal qual o do “escravo”, no sentido de devoção e servidão eterna. “Estranho....” pensei...que liberdade é esta que aprisiona? Que não me mostra escolha? Que me faz usar uma corrente dessas? Não lembro, leitor, o que disse a menina; espero não te-la ofendido, porque sou muito limitada em certas ocasiões, com a minha fala e minha postura de “amiga”. Mas, seja lá o que eu disse a ela, alguma coisa aconteceu a partir de então.
Reencontrei Julya após este incidente numa missa, porque no início de nossa amizade, só nos víamos assim, e, surpreendi-me ao notar a ausência da tal corrente. “Eu pensei no que você me disse, e acho que você tem razão: eu não preciso dessa corrente”. Naquele instante, Julya Victor acabara de me libertar de uma das minhas prisões mais obscuras; e a partir de então, nos tornaríamos amigas.
Conhecemo-nos numa missa na Paróquia São Silvestre. Julya era, até então, aos meus olhos tão necessitados de rótulos e superficialidades, uma patricinha chatinha: sempre vestida de rosa e acompanhada pelas amiguinhas não menos frescas. A menina não me inspirava muita simpatia; mas, algo me chamava atenção na moça, sendo este algo uma corrente assustadora que ela trazia consigo no braço. Julya era carismática e tornara-se carismática após um longo período de militância na Pastoral da Juventude. Na época, isso não fazia muita diferença para mim, já que estava ainda num processo de “namoro” com a Pastoral da Juventude....mas, a corrente me intrigava e um dia perguntei a ela o porquê de tal adereço, tão disforme e que em nada combinava com suas roupas pinks e sua tez rosada.
Tratava-se, se bem me recordo, de uma corrente de uma tal congregação chamada “Escravas de Maria”. Julya ingressara nessa congregação, leiga, e a corrente era um símbolo de compromisso para com Maria, um despojamento tal qual o do “escravo”, no sentido de devoção e servidão eterna. “Estranho....” pensei...que liberdade é esta que aprisiona? Que não me mostra escolha? Que me faz usar uma corrente dessas? Não lembro, leitor, o que disse a menina; espero não te-la ofendido, porque sou muito limitada em certas ocasiões, com a minha fala e minha postura de “amiga”. Mas, seja lá o que eu disse a ela, alguma coisa aconteceu a partir de então.
Reencontrei Julya após este incidente numa missa, porque no início de nossa amizade, só nos víamos assim, e, surpreendi-me ao notar a ausência da tal corrente. “Eu pensei no que você me disse, e acho que você tem razão: eu não preciso dessa corrente”. Naquele instante, Julya Victor acabara de me libertar de uma das minhas prisões mais obscuras; e a partir de então, nos tornaríamos amigas.
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Eu acabara de chegar em Viçosa, e havia caído de pára-quedas na Pastoral da Juventude, no grupo de base e simultaneamente na coordenação regional. Não conhecia muita gente, mas já sentia uma deliciosa afinidade por algumas pessoas que muito me lembravam meus amigos Vicentinos, tão subversivos e amados. Julya me contava suas histórias, me emprestava sua Bíblia, seu adesivo da Pastoral da Juventude; falava das pessoas que eu haveria de conhecer, dentre elas, por exemplo, um tal rapaz com “boquinha de morango” que era o mais “gatinho” de toda a PJ, sendo o seu único “defeito” o fato de ter namorada..... “mas é lindo, Amanda!!...você vai ver só!!!!”
Eu não conhecia a Teologia da Libertação. Em São Paulo, durante os anos que fui Vicentina, deparei-me com um grupo de jovens e de pessoas que viviam essa experiência libertadora, que muito me tocava, mas eu não entendia isto como uma escolha eclesial, achava que era uma característica espontânea daquele meio...não sei.
Eu não conhecia a Teologia da Libertação. Em São Paulo, durante os anos que fui Vicentina, deparei-me com um grupo de jovens e de pessoas que viviam essa experiência libertadora, que muito me tocava, mas eu não entendia isto como uma escolha eclesial, achava que era uma característica espontânea daquele meio...não sei.
Meus amigos usavam o anel preto; o anel de tucum. Sempre quis um anel daquele, embora só conhecesse o seu simbolismo de amizade...esperei dois anos para ganhá-lo de um dos meus amigos - porque reza a lenda que este anel deve ser recebido como um presente e nunca comprado. Eu sentia muita vontade de ter um anel daqueles – embora não soubesse o porquê. Nunca ganhei o tal anel.
Julya me falava de Frei Betto, de política, de Leonardo Boff.....Julya, que era carismática e que ao mesmo tempo sonhava em integrar o Fé e Política no futuro, me apresentava a militância....seria possível? Sim, seria! Depois de dois anos de amizade, nos prometemos, durante o curso de extensão APOENA, que faríamos parte do Fé e Política juntas! Éramos fãs, aliás, “somos” fãs incondicionais da Graça Andreatta, nossa tutora para assuntos políticos e de cunho "feministico" (saudade da Graça...).
Sendo assim, com o seu jeito manso e profundo, Julya me mostrou o que era PJ, CEBS, forania, região, arquidiocese...Dom Luciano Mendes de Almeida.......aos poucos, ela abandonara o tom rosa e passou a vestir-se com outras cores, tão bonitas quanto, como o preto, o vermelho, o branco – aos poucos, Julya tornou-se um mulherão aos meus olhos, e aos olhos de todos a quem ela delicadamente acolhia em sua vida.
Julya me falava de Frei Betto, de política, de Leonardo Boff.....Julya, que era carismática e que ao mesmo tempo sonhava em integrar o Fé e Política no futuro, me apresentava a militância....seria possível? Sim, seria! Depois de dois anos de amizade, nos prometemos, durante o curso de extensão APOENA, que faríamos parte do Fé e Política juntas! Éramos fãs, aliás, “somos” fãs incondicionais da Graça Andreatta, nossa tutora para assuntos políticos e de cunho "feministico" (saudade da Graça...).
Sendo assim, com o seu jeito manso e profundo, Julya me mostrou o que era PJ, CEBS, forania, região, arquidiocese...Dom Luciano Mendes de Almeida.......aos poucos, ela abandonara o tom rosa e passou a vestir-se com outras cores, tão bonitas quanto, como o preto, o vermelho, o branco – aos poucos, Julya tornou-se um mulherão aos meus olhos, e aos olhos de todos a quem ela delicadamente acolhia em sua vida.
HORIZONTE DISTANTE
Julya nasceu cega. Não havia perspectiva de que voltasse a enxergar; mas ela voltou. Sempre que ouvia a música “Horizonte distante”, dos Los Hermanos, me lembrava dela. Nossa amizade foi bem particular; nunca saímos juntas, por exemplo. Sempre tentávamos combinar..mas simplesmente, nunca dava certo. Nós nos encontravamos casualmenente. Na Pastoral da Juventude, na lotação, nos churrascos e festas dos amigos; eu à visitava, algo que adorava fazer; já ela, nunca me retribuiu uma só visita. Emprestávamos coisas uma à outra. Ela me empretou o cd da Rita Ribeiro, este que não devolvi; eu não a emprestei o cd da Sara Bentes, porque esquecia de pegá-lo em meio a minha bagunça. Julya cantava, como um passarinho. Eu emprestei a ela uma linda saia que foi usada por minha amiga num festival de música em Viçosa.
Julya queria formar-se em fisioterapia e trabalhar na roça. Para mim, ouvir isso dela foi a consagração da minha admiração pela moça, que queria trabalhar pelo pobre e pelo oprimido, por tudo aquilo que na época eu acreditava – e que ainda acredito, apesar da minha fase “arroz de festa”. Julya me apresentou a Escola Família Agrícola também...e os trabalhos da extensão rural. Julya foi a minha amiga "humanizante", aquela que me deu o meu primeiro anel de tucum, ainda que através das mãos de outrem.
Julya acompanhou o meu pré-namoro, o meu namoro, a minha crise do namoro, e, pelo que sei, foi informada no carnaval de que o meu namoro havia terminado. Não tivemos tempo de conversar sobre isso, o que talvez tenha sido uma boa tática de Deus. Ela acompanhou a minha crise de bipolaridade, os meus aniversários, os nomes dos meus filhos – Julya e Hebert. O meu lítio diário de cada dia, a minha leitura teológica das coisas.
Eu acompanhei o início do namoro dela com o Hebert, e todo o desafio que isto implicou. Um homem mais velho, de outra religião, que já havia sido casado, com filhos...com outra realidade. Conversamos muito. E fico feliz pelas escolhas que minha amiga fez.
Julya queria formar-se em fisioterapia e trabalhar na roça. Para mim, ouvir isso dela foi a consagração da minha admiração pela moça, que queria trabalhar pelo pobre e pelo oprimido, por tudo aquilo que na época eu acreditava – e que ainda acredito, apesar da minha fase “arroz de festa”. Julya me apresentou a Escola Família Agrícola também...e os trabalhos da extensão rural. Julya foi a minha amiga "humanizante", aquela que me deu o meu primeiro anel de tucum, ainda que através das mãos de outrem.
Julya acompanhou o meu pré-namoro, o meu namoro, a minha crise do namoro, e, pelo que sei, foi informada no carnaval de que o meu namoro havia terminado. Não tivemos tempo de conversar sobre isso, o que talvez tenha sido uma boa tática de Deus. Ela acompanhou a minha crise de bipolaridade, os meus aniversários, os nomes dos meus filhos – Julya e Hebert. O meu lítio diário de cada dia, a minha leitura teológica das coisas.
Eu acompanhei o início do namoro dela com o Hebert, e todo o desafio que isto implicou. Um homem mais velho, de outra religião, que já havia sido casado, com filhos...com outra realidade. Conversamos muito. E fico feliz pelas escolhas que minha amiga fez.
Eu também acompanhei o seu remédio para Lupus, tão necessário de cada dia quanto o meu Lítio. A diferença é que o remédio dela a fazia emagrecer, diferente do meu Lítiio...
Éramos mulheres ansiosas.
CORES
Julya faleceu no dia 02 de março de 2009 em Belo Horizonte, atropelada por um carro, no dia da minha conversa "fatídica" com o meu ex namorado - o rapaz da boca de morango. Nunca soube como acontecera de fato.
Julya faleceu no dia 02 de março de 2009 em Belo Horizonte, atropelada por um carro, no dia da minha conversa "fatídica" com o meu ex namorado - o rapaz da boca de morango. Nunca soube como acontecera de fato.
Julya deixou uma legião de amigos, um noivo, uma família linda, uma formatura e carreira brilhante e muitas cores, muitos mundos novos que ela nos apresentou.
Hoje senti uma grande necessidade de falar sobre esta amiga, porque a sinto perto de mim, e diante das situaçãoes as quais tenho vivido, gostaria de senti-la ainda mais próxima.
Hoje senti uma grande necessidade de falar sobre esta amiga, porque a sinto perto de mim, e diante das situaçãoes as quais tenho vivido, gostaria de senti-la ainda mais próxima.
Passamos tanto tempo na vida à mercê de uma série de convenções, de tabus, de correntes, de preconceitos e simplesmente esquecemos de viver. Pode ser que não dê tempo de mudar a rota desta travessia: morrer com a palavra presa na garganta não há de ser bom...
Apesar dos 20 poucos anos com que nos deixou, Julya viveu intensamente.
Eu, às vezes me acho tão quadrada, tão medrosa, tão negligente, sobretudo comigo mesma, que percebo uma corrente ainda no meu pulso, precisando ser rompida, mas não sei, ainda, como fazê-lo.
....a vida é tão bonita..
....a vida é tão bonita..
.amar é tão bom....
estudar...trabalhar...crescer.....sofrer....ganhar....perder.....
ter amigos...família....segredos.......é preciso que mais gente tenha acesso à vida e a toda a liberdade que a Julya me trouxe.
É preciso mudar o rumo da prosa, da travessia deste sertão; mudar o nome da morte, das coisas e das pessoas se for preciso; mudar o nosso próprio nome (minha amiga mudou seu nome pouco antes de falecer, de Julyan Victor para Julya Victor).
Mudar o olhar, o tom, a roupa velha.
Julya faz aniversário dez dias depois do meu: 20 de novembro de 1985.
Julya faz aniversário dez dias depois do meu: 20 de novembro de 1985.
Enquanto eu tiver vida, quero contar aos meus filhos – não mais Julya e Hebert, obviamente – do quão privilegiada eu sou por ter conhecido muita gente boa, gente de garra, com um pé no chão e outro nas estrelas....
Julya é essa amiga - rosa, branca e negra - que tanto amo e sempre (se é que o sempre existe) vou amar.
Esteja bem, moça...e se tiver um prazo, em meio as suas aventuras estrelares, cuidando dos pobres e oprimidos de Deus...mande -nos uma mãozinha....estou precisando bater um papo sério contigo....Amém.
*********************
Para Julya....
"Por onde vou guiar
O olhar que não enxerga mais
Dá-me luz, ó Deus do tempo
Dá-me luz, ó Deus do tempo
Nesse momento menor
Pr'eu saber seu redor
A gente quer ver Horizonte distante
A gente quer ver Horizonte distante
Aprumar
Através eu vi
A gente quer ver Horizonte distante
A gente quer ver Horizonte distante
Aprumar
Através eu vi
Só o amor é luz
E há de estar daqui
Até alto e amanhã
Quem fica com o tempo
Eu faço dele meu
E não me falta o passo, coração
E não me falta o passo, coração
Avante
A gente quer ver
Avante
A gente quer ver
Horizonte distante
A gente quer ver
A gente quer ver
Horizonte distante
Aprumar..."
(Horizonte Distante - Los Hermanos - Marcelo Camelo)
...a vida é tão bonita...amar é tão bom....
ResponderExcluirestudar...trabalhar...crescer.....sofrer...
ganhar...perder...ter amigos...família...segredos...é preciso que mais gente tenha acesso à vida e a toda a liberdade que a Julya me trouxe.
Que lindo!!! Realmente deve ter sido um privilégio conhecer alguém assim...