* De Fernando Salgueiro. Vaticano.
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O UNIVERSO (que outros chamam a
Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de
galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados
por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares
inferiores e superiores: interminavelmente.
A distribuição das galerias é invariável.
Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos
os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de
um bibliotecário normal.
Uma das faces livres dá para um estreito
vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a
todas. À esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários
minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades
físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao
infinito.
No vestíbulo ha um espelho, que fielmente
duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a
Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para quê essa
duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas
representam e prometem o infinito…
A luz procede de algumas frutas esféricas
que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A
luz que emitem é insuficiente, incessante. Como todos os homens da
Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro,
talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem
decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer; a poucas léguas do
hexágono em que nasci.
Morto, não faltarão mãos piedosas que me
joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo
cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela
queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável.
Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do
espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que
é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (os místicos
pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande
livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes;
mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro
cíclico é Deus). Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: “A
Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja
circunferência é inacessível”.
A cada um dos muros de cada hexágono
correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros
de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada
página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor
preta.
Também há letras no dorso de cada livro;
essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que
essa inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a
solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o
fato capital da história), quero rememorar alguns axiomas.
O primeiro: a Biblioteca existe ab
aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do
mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito
bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o
Universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos
enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o
bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus.
Para perceber a distância que há entre o
divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trémulos que
minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas
do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente
simétricas.
O segundo: O número de símbolos
ortográficos é vinte e cinco[1]. Essa comprovação permitiu, depois de
trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver
satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura decifrara: a
natureza disforme e caótica de quase todos os livros.
Um, que meu pai viu em um hexágono do
circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V
perversamente repetidas da primeira linha ate à última. Outro (muito
consultado nesta área) é um simples labirinto de letras, mas a página
penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides.
Já se sabe: para uma linha razoável com
uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões
verbais e de incoerências. (Sei de uma região montanhosa cujos
bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de procurar
sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas
linhas caóticas da mão… Admitem que os inventores da escrita imitaram os
vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é
casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos,
não é completamente falaz).
Durante muito tempo, acreditou-se que
esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou
remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros
bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos
agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que
noventa andares mais acima é incompreensível.
Tudo isso, repito-o, é verdade, mas
quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a
nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que
cada letra podia influir na subsequente e que o valor de M C V na
terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra
posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros
pensaram em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceite,
ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um
hexágono superior[2] deparou com um livro tão confuso quanto os outros,
porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou o seu
achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em
português; outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde
ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com
inflexões de árabe clássico.
Também decifrou-se o conteúdo: noções de
análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição
ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio
descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que
todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o
espaço, o ponto, a vírgula as vinte e duas letras do alfabeto.
Também alegou um fato que todos os
viajantes confirmaram: “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros
idênticos”. Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é
total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações
dos vinte e tantos símbolos ortográficos (numero, ainda que vastíssimo,
não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os
idiomas.
Tudo: a história minuciosa do futuro, as
autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e
milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses
catálogos, a demonstração da falácia do catalogo verdadeiro, o evangelho
gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do
comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de
cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos
os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a
mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca
abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante
felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e
secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução
não existisse: em algum hexágono. o Universo estava justificado, o
Universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança.
Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de
profecia, que para sempre vindicavam os actos de cada homem do Universo e
guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos
abandonaram o doce hexágono natal e precipitaram-se escadas acima,
premidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação.
Esses peregrinos disputavam nos
corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas
escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos túneis,
morriam despenhados pelos homens de regiões remotas. Outros
enlouqueceram… As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas
do futuro, a pessoas talvez não imaginarias) mas os que procuravam não
recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma
pérfida variante da sua, é computável em zero.
Também se esperou então o esclarecimento
dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É
verosímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se
não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá
o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse
idioma. Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos…
Existem investigadores oficiais,
inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua função: chegam sempre
estafados; falam de uma escada sem degraus que quase os matou; falam de
galerias e de escadas com o bibliotecário; ás vezes, pegam o livro mais
próximo e o folheiam, á procura de palavras infames. Visivelmente,
ninguém espera descobrir nada.
A desmedida esperança, sucedeu, como e
natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em
algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros
preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável. Uma seita
blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens
misturassem letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom
do acaso, esses livros canônicos.
As autoridades viram-se obrigadas a
promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi
homens velhos que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns
discos de metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina
desordem.
Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras
inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas,
folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu
furor higiênico, ascético, deve-se a insensata perda de milhões de
livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os “tesouros”
destruídos por seu frenesi negligenciam dois fatos notórios.
Um: a Biblioteca é tão imensa que toda
redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é
único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias
centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas
diferem por uma letra ou por uma virgula. Contra a opinião geral,
atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos
Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses fanáticos
provocaram. Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono
Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes,
ilustrados e mágicos.
Também sabemos de outra superstição
daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono
(raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o
compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e
é análogo a um deus.
Na linguagem desta área persistem ainda
vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram á
procura d’Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos
rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava?
alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar
previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro
B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito…
Em aventuras como essas, prodigalizei e
consumi meus anos. Não me parece inverosímil que em alguma prateleira do
Universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem –
um só, ainda que seja há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a
honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para
outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja
ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme
Biblioteca Se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é
normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura
coerência) é quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de “a Biblioteca
febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de
transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma
divindade que delira”.
Essas palavras, que não apenas denunciam a
desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu
gosto péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui
todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e
cinco símbolos ortográficos, porém nem um único disparate absoluto.
Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro
intitula-se Trono Penteado, e outro A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas
mlö.
Essas proposições, à primeira vista
incoerentes, sem dúvida são passíveis de uma justificativa criptográfica
ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na
Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas
línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode
articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que
não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é
incorrer em tautologias.
Esta epístola inútil e palavrosa já
existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos
incontáveis hexágonos – e também sua refutação. (Um numero n de
linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo
biblioteca admite a correta definição ubíquo e perdurável sistema de
galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra
coisa, e as sete palavras que a definem tem outro valor. Você, que me
lê, tem certeza de entender minha linguagem?);
A escrita metódica distrai-me da presente
condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou
nos fantasmagórica. Conheço distritos em que os jovens se prostram
diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem
decifrar uma única letra.
As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que
inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população.
Acredito ter mencionado os suicídios, cada ano mais frequentes. Talvez
me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a
única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada,
solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos,
inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não
interpolei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico
pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam
que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem
inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem
limites esquecem que os abrange o número possível de livros.
Atrevo-me a insinuar esta solução do
antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno
viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos
séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que,
reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa
elegante esperança.
[1] expressão popular para resplendor.
[2] Mesmo que gupiara, depósito de diamantes.