sábado, 1 de setembro de 2012

Ninhada

*Pintinhos. Foto de Rafael Simões.
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Era um menino de cabelo em "cuia" quando salvou a primeira vida de todas: um passarinho. Ainda na época do cabelo "cuia", salvava árvores e as enfeitava para o Natal, com material artesanal que ele mesmo elaborava, delicadamente.
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Nunca conheci pessoa tão harmoniosa. Conseguiu realizar o primeiro e único "amigo secreto" de Natal em nossa família. Um feito! Nunca senti tanta inveja de alguém: manipulava o mundo pelo coração.
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Olha, me irritava muito o menino, é preciso dizer! Tinha um jeito meio mole, falava mole; já na moralidade, no caráter, era duro como rocha. Jogava os cigarros das pessoas no chão, brigava com elas, intimidava-as com discurso de gente grande. Estando aqui hoje, condenaria-me à fogueira! (Uma vez me chamou de órfã, chorei horrores até que me pedisse perdão). Muito religioso na infância; já na adolescência, dava-nos lampejos de um ateísmo precoce, infelizmente não desenvolvido....Nerd e inteligente; uma das pessoas mais irritantes do mundo, senão fosse pelo tamanho da alma, tão grande, e de um senso de humor pleno aos dezesseis. Transitava com facilidade entre  adultos e crianças, entre  plantas e  animais (dominava todos os reinos). Um dia, disse-me "eu te amo" e levou um tapa na cara (tínhamos 10 e 13). Amanheceu um homem e não parou mais.
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Nasceu em setembro, mês das pessoas plenas.
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Usava o adjetivo "magnífico" para coisas triviais; ensinou-me que não existe bem ou mal, já que o ser humano carrega em si tal dualidade desde que nasce, como afronta. Era sarcástico como as pessoas que de tão massacradas pelo azar decidem fazer as pazes com a vida (por falta de opção). Confiava cegamente nos tolos; compreendia os "marginais" como se fosse um deles, ninguém entendia.
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Não sei como gostaria, o menino, de ser lembrado, na verdade nunca o perguntei. Seus feitos foram discretos, quase imperceptíveis (ainda tenho raiva do amigo secreto, como ousou o menino desafiar a hierarquia familiar?). Tinha uma mochila de jeans velho, uma bicicleta velha e um caderno quadriculado tão feio que sempre quis iguais. Porque todos os seus bens eram graciosos, como se fosse o menino dotado de um poder secreto, que realçava a beleza das coisas que suas mãos tocavam.
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No entanto, tinha péssimos hábitos alimentares: era dessas pessoas chatas que não comem cebola e separam as verduras no canto do prato. Só comia omelete e arroz com banana.
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Era branco como leite. Nunca vi pessoa tão branca nesse país. Nos dentes, manchinhas de nuvens que até lhe caíam bem; no nariz e em toda cara, sardas igualmente brancas (ou rosas, em dias de muito sol). Meu sonho era ter sardas idênticas (daí meu fascínio por gente ruiva, homem ou mulher).
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Na infância, gostava de reproduzir tudo o que eu fazia.
Eu fingia comer terra; o menino a comia de verdade;
Eu fingia comer flores; o menino as comia de verdade;
Eu fingia me jogar no rio; o menino se jogava;
Eu fingia trazer comigo um mosquito invisível; o menino acreditava que estava ali, o mosquito;
Eu fingia subir no pé de manga; o menino subia, caía, e levava "chinelada" da mãe.
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Passávamos horas rindo de nada, para o nada, sem intenção alguma. E desses momentos brotavam os assuntos mais improváveis, vindos de parte nenhuma. Éramos como ninhada de pintinhos, um-extensão-do-outro. Chorava o menino, quando eu voltava para a cidade grande: chorava de dar dó.
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Cortou o cabelo de "cuia" e beijou uma Juliana (...mas havia uma Suelen também....).
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Passou por aqui rapidamente, deu-me um abraço e atravessou a ponte.
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- Até amanhã!
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Cleiton Lelis Lopes Milagres
1/9/1988
18/10/2004

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