Dedicado a Francisco Erasmo Rodrigues de Lima (in memoriam)
"Quando o amor o chamar,
Se guie.
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados
E quando ele vos envolver com suas asas
Cedei-lhe
Embora a espada oculta na sua plumagem possa feri-vos.
[...] O amor nada dá, senão de si próprio.
E nada recebe, senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Pois o amor basta-se a si mesmo.
Quando um de vós ama, que não diga “Deus está no meu coração”
Mas que diga antes, “eu estou no coração de Deus”
(Trecho retirado do Alcorão - ou Corão).
Desde o ano passado venho tentando retornar ao Sofia de Buteco, embora saiba que está mais para fora de moda a escritura em Blogs. Na era dos Youtubers e de outros aplicativos, a palavra escrita perdeu um pouco da sua força atrativa; do encanto para os leitores. Contudo, jamais poderia ter um canal no Youtube, mesmo já havendo recebido convites para tal: 1. Não gosto de vídeos e tampouco da minha voz (apenas para cantar em karaokês ou determinadas músicas nas quais possuo afinação por sorte, sobretudo o choro e o samba); 2. Sou extremamente tímida; 3. Escrever é uma das coisas que mais aprecio e, sendo de graça, não poderei evitá-lo mais: Já era tempo de reaparecer.
A primeira providência foi contar com um novo Layout criado por minha amiga Claudineia Rosa (Obrigada por isso!). A segunda foi a escolha do tema. Já o havia feito há muito, porém, as intempéries da vida me obrigaram a recomeçá-lo pelo meio e não pelo início. A terceira providência está em processo: Retomar os velhos e novos canais de divulgação. Voltemos então ao começo. O Sofia de Buteco é um Blog pessoal, cujo objetivo é expor uma espécie de diário ficcional, acrescido por colagens e montagens feitas pela autora que voz fala. Passemos, sem mais milongas, ao que deveria haver sido o texto de estreia.
Em qualquer dicionário de nomes que busquemos haverá lá como definição de Francisco: "livre" ou "francês livre". Como esse texto nada tem de francês, recordemos apenas o sentido de liberdade a que o nome evoca. Ao procurarmos por Erasmo, eis que encontro: "Significa 'o que gera amor', 'amável', 'amoroso'.Tem origem no grego Erásmios, derivado da palavra erasmós que quer dizer 'amor' ”. Posso, em livre interpretação, concluir que o nome Francisco Erasmo seria algo como "aquele que ama e gera o amor livremente". Por coincidência maior, Francisco é o nome do meu tio preferido por parte de pai (perdoem-me os demais tios...); e Erasmo, do cantor preferido de meu pai, que se chama Raimundo, e possivelmente o de meu tio Francisco inclusive. A escolha temática já estava feita desde o dia quatro de setembro de 2015. Mas é somente agora que ela se verbaliza (ou se textualiza).
Escadaria da Catedral da Sé, São Paulo. Uma mulher que então lá rezava foi mantida como refém de um bandido desesperado que, possivelmente (minhas inferências), ao avistar a polícia fora da Igreja imaginou que mantendo-a como refém poderia, talvez, escapar de uma nova prisão ou do risco de morte. Seu nome era Luiz Antônio da Silva, cuja extensa ficha policial não nos interessa aqui: Cada ser humano tem seus motivos para fazer as más e as boas escolhas que a vida lhes limita. Deixemo-os o pobre, que hoje descansa ou purga em "paz". A moça em questão, Elenilza Mariana, de 25 anos (pouco nos importa as preces que ali fazia e o porquê ali estava...), foi então mantida como prisioneira e, segundo a jovem: "[...]'Desci as escadas todinhas com ele. Quando eu avistei os policiais, eles vieram e abordaram ele. Quando falaram ‘mão pra cima’, ele começou a dar tiro nos policiais. Me segurou, começou a subir de novo as escadas comigo. Teve uma hora que ele escorregou, foi a hora que eu consegui segurar a arma dele. Foi na hora que ele puxou com tudo, aí acabou atingindo meu olho', afirma a refém."
Foi naquele momento em que surgiu o herói da nossa história, um senhor - morador de rua por opção (mais tarde falarei sobre isso) - cujo nome era (ou é) Francisco Erasmo. O senhor, de 61 anos, que passava por ali casualmente, com uma pequena sacola em mãos, por razões as que nunca serão conhecidas, só imaginadas, interveio na cena do crime tentando salvar a moça. Parece-nos que se aproximou do "casal" e avançou contra o homem que abraçava a refém sob a mira de uma arma. Ele conseguiu empurrar o "criminoso", mas esse foi mais rápido em pegar a arma e atirar em nosso Dom Quixote. Em seguida, é possível ouvir (ver? com pouca nitidez) os disparos da polícia que deram cabo à vida do "suspeito": o criminoso cai morto instantaneamente. Há vídeos e mais vídeos sobre o caso, mas deixo à curiosidade do leitor para que o veja, pois a minha escritura traz outra proposta. Ainda, segundo a refém: "O senhorzinho veio, empurrou ele e os dois caíram. Na hora que eu me levantei. Desci as escadas correndo. Ainda eu vi o senhorzinho sendo atingido”. Por quem? Pelo criminoso ou pela polícia? Conforme disse, muito se escutou mas pouco se viu, com a nitidez necessária. Em menos de um mês o caso já havia sido esquecido, exceto por mim, que o mantenho comigo quase diariamente e, em uma aula de Doutorado da semana passada, o episódio me veio à mente e por isso estamos aqui, neste momento único.
Francisco Erasmo era morador de rua por "opção". Os onze familiares (ou parentes) que compareceram em seu enterro, sem velório, afirmaram que o nosso Dom Quixote da Sé vivia nas ruas do Centro de São Paulo há dez anos, devido a problemas com bebida. Era casado, tinha quatro filhos (um desses era filha, pesquisei), dormia em albergues e já havia tido passagens pela polícia. O "morador de rua" foi enterrado na presença da sobrinha, da filha mais velha, da esposa e dos demais parentes. Na época, meu tio e pai tinham quase a mesma idade desse senhor, então, egoistamente pensava (egoistamente porque nunca saberemos o que realmente ocorreu na vida daquela família): Onde estavam todas essas pessoas enquanto ele dormia nas ruas negras e sujas de São Paulo?
"O amor nada dá senão a si próprio"
Durante a aula de Doutorado que comentei, discutíamos a proposta de Amor Fati de Nietzsche e a leveza do seu pensamento filosófico, apesar da sua melancolia e morte trágica. Discutíamos também a noção de Desejo. Todo o ser humano possui desejo e, ao ser castrado dele (como supostamente é imposto pelo catolicismo e outras religiões), esse homem nega-se em vez de afirmar-se. Como era de se supor, a discussão tomou outro rumo - O que é o Amor?
Para mim há várias formas de amor e todas legítimas.
E se o desejo de um sujeito for o do amor sacrificial? Bem, para boa parte das pessoas que lá estavam, o amor é um processo de alegria pura, de liberdade incondicional destinado à humanidade. Habituados a uma formação judaico-cristã, acreditamos levianamente que o amor nada tem de sacrificial, de Ágape: "Ágape (em grego "αγάπη", transliterado para o latim "agape"), é uma das diversas palavras gregas para o amor. A palavra foi usada de maneiras diferentes por uma variedade de fontes contemporâneas e antigas, incluindo os escritores da Bíblia".
Ora, como sou uma aluna B (e não A), obviamente não me arriscaria a falar de Deus ou de amor Ágape em uma aula sobre Nietzsche. Mas recordei, em breve alusão, aos "castrados" Juan de la Cruz ou Tereza D'Avila que, ainda sendo religiosos, não deixaram de amar ou de sentir desejo e isso é claro pelas escrituras que a nós nos deixaram. Imediatamente, contei-lhes a história do Senhor Francisco Erasmo e, nas entrelinhas, sugeri que o seu desejo naquele momento - o de doar-se para a morte - pode também ser interpretado tanto como desejo quanto amor.
- Desculpa, mas.... O que isso tem a ver com amor? - perguntaram-me.
Nunca saberemos se Francisco Erasmo estava bêbado, surtado ou se pretendia há tempos cometer um suicídio alternativo. Isso claramente nada teria a ver com amor ou desejo, apenas com a impulsividade do sujeito, a fatalidade da vida e o azar de estar na hora errada e no local errado, agindo sob um impulso desmedido, inebriado ou alucinógeno.
Eu, contudo, tenho outra interpretação: Um senhor daquela idade, vivendo há tantos anos nas ruas de São Paulo e dependendo delas para seu sustento, de inebriado nada realmente tinha, independente de suas formas de escape, alucinógenas ou não. Assisti ao vídeo umas tantas vezes e é certo de que sabia o que estava fazendo e de que desejou fazê-lo. E, na minha opinião, é possível que o tenha feito não por aquela moça, mas por sua filha, sua sobrinha, ambas que tinham uma idade aproximada a da vítima. É possível que seu ato "impensado" - o que salvou a vida da refém - fosse uma espécie de auto-redenção: não a Deus, não à vida eterna, não à moral e aos bons costumes, mas ao amor que sentia pela filha, amor esse que não lhe pode demonstrar nos dez últimos anos em que viveu nas ruas da capital, seja pelo motivo que for.
Amor esse talvez nunca demonstrado. Quem nos dirá? Quem nos julgará?
Ainda assim, nosso Quixote da Sé desejou sair de si mesmo e amar sacrificialmente. E o fez com a própria vida. Seria isso uma negação da vida? Para mim.... Uma afirmação em absoluto! Se pudesse ter o privilégio de escolher como será a minha morte, salvar a vida de alguém - com a minha própria - estaria dentre as opções.
Mas sei que isso nunca me ocorrerá, pois essa morte ou vida afirmativa só são destinadas aos bons heróis: não aos heróis da moral, mas aos não-heróis. Àqueles que não se reconhecem como tal; aos sonhadores, aos fracos, aos bons ladrões, aos loucos, às crianças, aos inebriados, aos Franciscos e Erasmos da vida real e claro, aos Quixotes que ainda resistem.
Quixote da Sé...
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Fontes:
http://adonadotempo.blogspot.com.br/2010/08/o-alcorao-e-o-amor.html
http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/09/deu-vida-dele-por-mim-diz-mulher-feita-refem-na-catedral-da-se-em-sp.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/09/morador-de-rua-que-ajudou-refem-na-se-e-enterrado-em-sao-paulo.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/09/tiroteio-em-frente-catedral-da-se-deixa-dois-mortos-diz-pm.html.
https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/