quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

SOLSTÍCIO DA CEGUEIRA



                                                               fonte:http://saude.culturamix.com/doencas/principais-causas-da-cegueira




Experimentava séries de sonhos premonitórios através dos quais tentavam lhe entregar a chave da vida. Mas sempre, um pequeno ruído inesperado fazia com que acordasse antes da hora devida: minúsculo-mosquito, desses que incomodam a todos os lares a fim de nos torrar a paciência e espírito, criaturas divinas mas sem serventia alguma, a não ser pela ótica da cadeia alimentar, mas pouco importavam ao homem as pesquisas na área da Biologia, o que pretendia, somente, era o encontro com a chave que traria para si as respostas que lhe segredavam em seus sonhos e que fazia força em interpretá-las durante sua vigília.

A vida já não respondia, os telefones ficaram mudos, a energia elétrica e água cortadas, assim como as cartas que enviava semanalmente mas já não obtinha respostas.

Sofria de sonambulismo crônico.

Acordou com o olho esquerdo vermelho; coçava-o freneticamente como se esfregasse uma lâmpada mágica na qual habitasse um gênio misterioso. Chamavam-no de louco por acreditar que vivia em duas ou três dimensões, além da terrena, a que com ele compartilhamos. 

Há tempos não se alimentava. Ou melhor, alimentava-se de livros e histórias improváveis como forma de fortalecer seu grão de esperança da qual não abria mão: era um homem teimoso, certamente ariano com ascendente em touro. 

Havia demasiado trabalho a fazer, porém escolhera a solidão. Era no solstício da cegueira que encontrava seu quinhão de paz, incomunicável e incompreendido. 

Desejava tanto certo desejo que não existia ser humano, desumano, vil ou bondoso que não o soubesse. Não escondia de ninguém os desejos pensados ao apagar as velas de aniversário ou quando por ventura se deparava com raras estrelas cadentes. 

Aquele homem queria ser reencontrado. 

Perdeu-se em labirintos desconhecidos, errou os erros que todos erramos, mas decidiu se esconder para não ser atormentado pela ideia do que poderia ter sido mas ainda não foi.

Contudo, o pobre homem sonhava. E não havia saída quanto a isso: o sonho vem, a vigília chega, e lá está o homem com um bloco de anotações para desvendar anagramas e símbolos que o solstício da cegueira o concedia por compaixão. 

Tinha uma filha. Não a via desde muito e queria que ela compreendesse que a vida não é fácil, não é justa, não é o final de um romance romântico. Mas não podia explicar-lhe todas essas coisas, pois há quarenta anos não se encontraram. 

Apenas pressentia o seu nascimento tardio e portanto já escolhia com exatidão o que a ela seria ensinado, o papel de pai que executaria com destreza assim que nascesse, pois sua missão era a de ser bom pai. 

Até sua chegada, adormecia na esperança do encontro com a chave. Ao despertar, o bloco de notas, no qual rabiscava as memórias oníricas que os anjos - ou seus estímulos mentais - permitiam-no recordar. 

Nos dias naturais, ouvia Beatles e gostava de moquecas de camarão. Apreciava casinhas com varandas delicadas, onde se sentava em cadeiras artesanais que havia ali para observar o pôr do sol. Era leal com seus amigos e família. Colecionava ímãs de geladeira dos países por onde passou. Amava um cão, esse que também não tinha nascido. Mas pressentia a sua chegada.

Aquele homem queria ser reencontrado.

Era um sujeito estranho, mas não pouco atraente. Gostava de dançar quando não observado: Foxtrot, Gene Kelly, Frank Sinatra, entre outros ritmos e estrelas de nomes conhecidos. 

Desejava saltar de paraquedas. Em muitos de seus sonhos, via-se caminhando nu pelas avenidas onde morara ou caindo de precipícios acordando em seguida como se por susto retornasse abruptamente ao próprio corpo. Então, tomava o bloco de notas nas mãos e interpretava cada nova visão, cada rosto desconhecido, como se fosse o prenúncio de um novo solstício. 

Aquele homem seria reencontrado em breve, mas não poderia sabê-lo ou o medo o afastaria do próprio destino. Dessa maneira, preferia a dúvida inconsciente à certeza de que por mais estranho que fosse, era igual a todos nós: pobre homem humano e esperançoso, máquina desejante e feitor de suas estradas. 

Certo dia, reconheceram-no na rua: assustou-se mas sorriu.

Sua missão se completou. 

Rasgou o bloco de notas e curou-se do olho avermelhado, retomando a visão que nunca fora perdida de fato. Ele a inventou. Enxergou de perto a filha, o cão, os vizinhos, os transeuntes, as árvores que adornavam o centro da cidade. Voltou a dançar nos salões do bairro, onde conheceu sua primeira e única esposa. Não custou muito para que suas premonições se realizassem: com o passar dos anos, já reencontrado, deixou o sonho e escolheu a vida.

Conformado, aceitou a felicidade,
mas nunca saltou de paraquedas:
Também sofria de acrofobia.


Nenhum comentário:

Postar um comentário