*Irmãs. Foto de Daniela Caniçali.
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Para Fernanda, prima-irmã:
Alma gêmea, sintônica, sintomática,
Amor à primeira vista.
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Alma gêmea, sintônica, sintomática,
Amor à primeira vista.
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Antes de que abrisse os olhos, ela já estava lá, em meio às fotos e recordações infantis. Tutora por excelência, ensinou meu pai a ser pai e minha mãe a ser um misto de cabelereira, déspota não esclarecida, confessionário aberto e gratuito: mãe de primeira e única viagem, sem volta, reparo ou obrigação.
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Quando me dei conta, olhei bem de perto e vi aquele projeto de ser, nem menina, nem mulher, com uma cabeleira enorme e esvoaçante, bonita, negra! Naturalmente desforme. Ainda mais desforme era o modo com que me tratava: uma babá chata e maldosa, sempre disposta a sabotar sem lágrima os meus primeiros prazeres. Não ás bonecas, não ao macarrãozinho de mamãe; não ao vinil da Roberta Miranda, ou às cantarolas precoces que me adivinhavam. Todo o amor que ela tinha por mim, desde que surgi no aposento que passou a ser meu, aposento de alma, não passava de uma obrigação entediante, raivosa, ruidosa, concreta: eu era o centro do que antes só tinha ausência, quando lá não estava Fernanda.
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Fernanda significa ousada - li num desses dicionários de nomes, sem muita credibilidade. Indiferentemente, Fernanda era ousada para os meus moldes, que na época só enxergavam grandes laços de cabelos, objetos rosas, bonecas rosas, algodão doce, rosa. Fernanda amamentava às bonecas, comia o macarrãozinho nojento de mamãe; dava de mimar à chatinha, cantava, rebolava - sem perder o rebolado e a realeza. Uma vez, ao visitarmos um menino realmente bonito, realmente diferente de todos os meus bonecos, Fernanda e o tal sujeito passaram horas a me ignorar, enquanto jogavam, a sós, uma torre de babel que mais me parecia um aglomerado de peças sem sentido. Suspeitei, naquele instante, a sutil diferença entre menina e mulher: os olhares de Danilo. Eu tinha 4 anos.
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Sempre soube, iconscientemente, que Fernanda não passava de uma má influência juvenil, enrrustida naquela cabeleira toda. Não queria seguir os seus passos, concentrando-me no caminho do bem, que a infância maldosamente me preparava. Mas ouvia as histórias de Fernanda, todas elas, apenas para saber o que não fazer, ao chegar a minha hora e vez.
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Fernanda se apaixonou algumas vezes. Foi capaz de aprender italiano, e aprender bem, apenas para se corresponder com um rapaz que fora visitá-la. A mim me parecia ridículo, todo aquele empenho, todo aquele gostar, por uma pessoa senão invisível, que morava a léguas e léguas de distância. Fernanda tentava me ensinar italiano, mas eu sabia que qualquer coisa vinda dela não era de confiança. Não se casaram, ela e o italiano: outras paixões ainda à esperavam, como a vida religiosa.
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Seja pelos padres, também italianos, seja pelo amor a Deus e a Cristo Jesus, minha prima cismou em ser freira. Outra absurdidade na qual eu jamais cairia, sendo eu muito mais esperta, embora menos bonita. Fernanda tentou, com zelo: mas devido a uma conspiração universal, estelar, resolveu entregar seu coração às coisas mundanas: boates GLS´s, bares, choperias, danceterias. Cortou o cabelo, o esvoaçante, fez uma progressiva: - O que Fernanda fez com o cabelo? - disse mamãe, na época em que ainda me fazia tranças e tererês (com aqueles grandes e infernais laços cor de rosa).
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À medida que o tempo passou, trazendo-nos novos caminhos, comecei a entender certas coisas sobre Fernanda que não precisavam de muita explicação. Meu cabelo já não se encaixava no laço, nem o laço no cabelo: curtinho, comprido, vermelho, liso, natural - não era mais que um amontoado de fios, dos quais dependiam (e dependem) exclusivamente das minhas mãos e humor, matando mamãe, gradualmente, de raiva infindável. Aprendi inglês - sem muito brilhantismo - também por uma paixão... Paixão que norteou os meus dias, sonhos e cartas dos 12 aos 17: um manáge à catre - se isso fosse possível, naquela época, naquele M.M.M. Bop.
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Também segui o destino religioso, não por um italiano, mas por um desencontro. Tal qual Fernanda, o universo, as estrelas, as conspirações levaram-me muito jovem às boates gays, às choperias, aos barzinhos e "danceterias" de forró; depois, em Minas Gerais, aos Leões, às festas universitárias e todo pacote indecente.
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Fernanda é formada em Letras.
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Muitas eram as coincidências que nos uniam: quanto mais tentava escapar das escolhas insanas de minha prima-irmã, automaticamente uma porta e janela se abriam com os mesmos enredos, apesar dos diferentes contextos e protagonistas.
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Nunca entendi, contudo, o que levara minha prima a se relacionar com aquele rapaz....tão estranho, tão "narigudo", tão desinteressante. Rapaz por quem vi Fernanda se perder, lentamente....
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Não passava de um mulherengo idiota, o qual nunca chegaria aos pés da minha prima e do gostar que ela poderia lhe oferecer. Quantas confissões, quantos barracos, quantos micos pelos quais ela passou. Quantas ligações, quanta felicidade clandestina - ou não - tudo isso, por um capricho de ambos - explicação razoável que eu encontrava, por volta dos meus dezessete.
...
Contou-me sobre o dia em que teve a coragem de ir até uma das rivais, oficiais, a fim de esclarecer o óbvio. Havía outras duas ou três rivais, mas estas já conheciam a realeza de minha prima - a que vem de berço.
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- Você é doida! Eu nunca faria isso por ninguém, imagina....ainda mais por W***, aquele narigudo feioso. Você tem que se dar valor! Ele não quer nada com você...Imagina?? Só você mesmo pra procurar "a outra". - disse Amanda, aos dezessete.
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Hoje Fernanda é uma mulher que encontrou seu quinhão de paz, apesar dos olhos sempre abertos, típicos das pessoas provindas da realeza, de sangue, alma ou desconfiômetro. É uma mulher belíssima, inteligentíssima, por quem sinto um orgulho filial, orgulho por existir no mesmo tempo e contexto que ela, dádiva que me foi dada por Deus.
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Amo Fernanda como a uma irmã.
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Reencontramos-nos recentemente. Após longas horas de conversas fiadas, fofocas, lembranças e aconselhamentos, passo a decifrar muitos capítulos daquela Fernanda, a que hoje me habita.
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- Bem vinda ao clube das trouxas, prima! - disse-me Fernanda, com aquela gargalhada maquiavélica de sempre... a mesma que me foi dada no dia em que caí, pela primeira vez, do meu primeiro cavalinho de plástico e pau.
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Quando me dei conta, olhei bem de perto e vi aquele projeto de ser, nem menina, nem mulher, com uma cabeleira enorme e esvoaçante, bonita, negra! Naturalmente desforme. Ainda mais desforme era o modo com que me tratava: uma babá chata e maldosa, sempre disposta a sabotar sem lágrima os meus primeiros prazeres. Não ás bonecas, não ao macarrãozinho de mamãe; não ao vinil da Roberta Miranda, ou às cantarolas precoces que me adivinhavam. Todo o amor que ela tinha por mim, desde que surgi no aposento que passou a ser meu, aposento de alma, não passava de uma obrigação entediante, raivosa, ruidosa, concreta: eu era o centro do que antes só tinha ausência, quando lá não estava Fernanda.
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Fernanda significa ousada - li num desses dicionários de nomes, sem muita credibilidade. Indiferentemente, Fernanda era ousada para os meus moldes, que na época só enxergavam grandes laços de cabelos, objetos rosas, bonecas rosas, algodão doce, rosa. Fernanda amamentava às bonecas, comia o macarrãozinho nojento de mamãe; dava de mimar à chatinha, cantava, rebolava - sem perder o rebolado e a realeza. Uma vez, ao visitarmos um menino realmente bonito, realmente diferente de todos os meus bonecos, Fernanda e o tal sujeito passaram horas a me ignorar, enquanto jogavam, a sós, uma torre de babel que mais me parecia um aglomerado de peças sem sentido. Suspeitei, naquele instante, a sutil diferença entre menina e mulher: os olhares de Danilo. Eu tinha 4 anos.
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Sempre soube, iconscientemente, que Fernanda não passava de uma má influência juvenil, enrrustida naquela cabeleira toda. Não queria seguir os seus passos, concentrando-me no caminho do bem, que a infância maldosamente me preparava. Mas ouvia as histórias de Fernanda, todas elas, apenas para saber o que não fazer, ao chegar a minha hora e vez.
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Fernanda se apaixonou algumas vezes. Foi capaz de aprender italiano, e aprender bem, apenas para se corresponder com um rapaz que fora visitá-la. A mim me parecia ridículo, todo aquele empenho, todo aquele gostar, por uma pessoa senão invisível, que morava a léguas e léguas de distância. Fernanda tentava me ensinar italiano, mas eu sabia que qualquer coisa vinda dela não era de confiança. Não se casaram, ela e o italiano: outras paixões ainda à esperavam, como a vida religiosa.
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Seja pelos padres, também italianos, seja pelo amor a Deus e a Cristo Jesus, minha prima cismou em ser freira. Outra absurdidade na qual eu jamais cairia, sendo eu muito mais esperta, embora menos bonita. Fernanda tentou, com zelo: mas devido a uma conspiração universal, estelar, resolveu entregar seu coração às coisas mundanas: boates GLS´s, bares, choperias, danceterias. Cortou o cabelo, o esvoaçante, fez uma progressiva: - O que Fernanda fez com o cabelo? - disse mamãe, na época em que ainda me fazia tranças e tererês (com aqueles grandes e infernais laços cor de rosa).
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À medida que o tempo passou, trazendo-nos novos caminhos, comecei a entender certas coisas sobre Fernanda que não precisavam de muita explicação. Meu cabelo já não se encaixava no laço, nem o laço no cabelo: curtinho, comprido, vermelho, liso, natural - não era mais que um amontoado de fios, dos quais dependiam (e dependem) exclusivamente das minhas mãos e humor, matando mamãe, gradualmente, de raiva infindável. Aprendi inglês - sem muito brilhantismo - também por uma paixão... Paixão que norteou os meus dias, sonhos e cartas dos 12 aos 17: um manáge à catre - se isso fosse possível, naquela época, naquele M.M.M. Bop.
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Também segui o destino religioso, não por um italiano, mas por um desencontro. Tal qual Fernanda, o universo, as estrelas, as conspirações levaram-me muito jovem às boates gays, às choperias, aos barzinhos e "danceterias" de forró; depois, em Minas Gerais, aos Leões, às festas universitárias e todo pacote indecente.
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Fernanda é formada em Letras.
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Muitas eram as coincidências que nos uniam: quanto mais tentava escapar das escolhas insanas de minha prima-irmã, automaticamente uma porta e janela se abriam com os mesmos enredos, apesar dos diferentes contextos e protagonistas.
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Nunca entendi, contudo, o que levara minha prima a se relacionar com aquele rapaz....tão estranho, tão "narigudo", tão desinteressante. Rapaz por quem vi Fernanda se perder, lentamente....
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Não passava de um mulherengo idiota, o qual nunca chegaria aos pés da minha prima e do gostar que ela poderia lhe oferecer. Quantas confissões, quantos barracos, quantos micos pelos quais ela passou. Quantas ligações, quanta felicidade clandestina - ou não - tudo isso, por um capricho de ambos - explicação razoável que eu encontrava, por volta dos meus dezessete.
...
Contou-me sobre o dia em que teve a coragem de ir até uma das rivais, oficiais, a fim de esclarecer o óbvio. Havía outras duas ou três rivais, mas estas já conheciam a realeza de minha prima - a que vem de berço.
...
- Você é doida! Eu nunca faria isso por ninguém, imagina....ainda mais por W***, aquele narigudo feioso. Você tem que se dar valor! Ele não quer nada com você...Imagina?? Só você mesmo pra procurar "a outra". - disse Amanda, aos dezessete.
....
Hoje Fernanda é uma mulher que encontrou seu quinhão de paz, apesar dos olhos sempre abertos, típicos das pessoas provindas da realeza, de sangue, alma ou desconfiômetro. É uma mulher belíssima, inteligentíssima, por quem sinto um orgulho filial, orgulho por existir no mesmo tempo e contexto que ela, dádiva que me foi dada por Deus.
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Amo Fernanda como a uma irmã.
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Reencontramos-nos recentemente. Após longas horas de conversas fiadas, fofocas, lembranças e aconselhamentos, passo a decifrar muitos capítulos daquela Fernanda, a que hoje me habita.
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- Bem vinda ao clube das trouxas, prima! - disse-me Fernanda, com aquela gargalhada maquiavélica de sempre... a mesma que me foi dada no dia em que caí, pela primeira vez, do meu primeiro cavalinho de plástico e pau.
Prima A M E I!!!!!
ResponderExcluirSó você mesmo para no auge de sua criatividade lembrar de tantas coisas.... fez pesquisas?!?!?!? kkkkkk
Confesso que até senti saudadessss... (como o tempo passa!!!!)
Mesmo eu sendo chatinha, (um pouco) grossa.... saiba que a recíproca é verdadeira....
Amo-te...
Baci...