...
Aprisionada pelo labirinto de perguntas que sua prodigiosa mente tecia, ritualisticamente ,todas as manhãs, Ana recebe o telefonema que estaria prester a mudar, senão toda a sua vida, pelo menos a melhor parte, dentro da fantástica parte, dentro da mais que perfeita parte desta:
...
- Alô?
- Oi...
- Oi! Desejaria falar com?
- Ana?
- Sim!
- Sou eu....
- Eu? Eu quem?
- A vida.
- Quem? Alô? Oi? Alô?
- ....
....
Ana sentia como se fosse público de um reality show, cuja responsabilidade em eleger este ou aquele participante dependesse exclusivamente do seu voto, escolha e vontade. Passara anos imaginando quando receberia, finalmente, um sinal ou aviso da própria morte, logo que a ciranda da vida por-se-ia fim, mas nunca, deveras, havia cogitado a hipótese de algum dia presenciar, lúcida, um telefonema da vida. Mas o que haveria sua própria vida de querer contigo? Qual o sentido daquele telefonema?
....
Mais que depressa, Ana se pos a pensar em tudo o que lhe aflingia, todas as escolhas mal feitas e dívidas não pagas; todos os eu´s te amo já ditos, todas as mentiras contadas a sua tia, toda a não culpa que sentia pelo mal que fazia a si mesma, toda a humanidade que tinha dentro de si.
....
Ana lembrara-se da primeira mentira de sua vida. Roubara um caminhãozinho da loja daquela antiga senhora, cujo nome já não vem ao caso. Ao ser repreendida por sua tia, Ana desnudou-se de qualquer mancha culposa e apenas sorriu: - Tia...eu só queria brincar. Eu ia devolver, prometo! Eu só queria ver como era por dentro.
....
De fato, como a maioria das mentiras, todas - grandes, pequenas, pretas, brancas, pardas e assexuais - Ana não achava o costume de mentir ilícito, tão pouco vão: ver o que há por dentro de todas as coisas era o seu pior vício; lógica cuja prática fazia com que sua vida não fosse mais, tão perto do que seria, sonâmbulismo diurno sem pulso e suspiro.
...
Ana mentia.
...
Ana mentia quando dizia "Bom dia", já sabendo que a maioria dos seus dias não haveriam de ser bons ou especiais, tão pouco destinados a algum mistério, fadados ao fracasso. Mesmo assim, Ana ludibriava a todos com a ilusão de que as grandes mudanças se iniciam pela manhã, como o Deus que abençoa os que cedo acordam! Mas, sabia Ana que não havia nada de mágico no universo e que Deus tinha predileção pelos atrasados e mal amados. Ana mentia quando observava com assombro uma criança na rua, ou recém nascida, como se nunca houvesse visto antes um exemplar daquele pequeno rosto, alma e cheiro. Ana achava que todos os recém nascidos eram a prova concreta de que somos mais próximos dos animais do que nos damos conta, visto que pequenos pintinhos têm a mesma alma, cheiro e rosto de bebê - ambos nascem do ovo da vida.
...
Ana mentia quando dizia amar. Ana sabia que amor é sentido inefável, inexprimível, mas Ana, mais preocupada com a auto salvação, dizia que amava várias vezes ao dia, ainda que ela própria nem sequer imaginasse que amasse mesmo, pouco importava amar ou não, desde que pudesse, quando bem entendesse, ver o que havia por dentro do amor.
...
Chegara o dia. O amor era a partícula comum entre pintinhos e bebês; o amor era a mola propulsora de todas as mudanças desnecessárias e invisíveis. Dentre todas as mentiras que contava, dentre todos os brinquedos que roubara, quando criança, dentre todos os nus que seus olhos já presenciaram, apenas o amor era o artefato jamais desconstruído e experimentado em sua mediocridade e pureza. Ana não sabia o que era amor, mas, desconfiava de que fosse qualquer coisa muito pequena, passível de apreender entre os dedos das mãos.
....
O telefonema da vida fizera com que Ana percebesse o amor que já estava. Vislumbrá-lo do avesso, de ponta cabeça, por de trás das roupas requintadas. Ana sabia lidar com a morte; há tempos já se preparava, desde a morte do irmão, para o dia da própria partida - bater as botas, subir ao telhado, ir à casa do Judas.
...
Ana só não esperava o encontro.
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- Alô?
- Oi...
- Oi! Desejaria falar com?
- Ana?
- Sim!
- Sou eu....
- Eu? Eu quem?
- A vida.
- Quem? Alô? Oi? Alô?
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Ana sentia como se fosse público de um reality show, cuja responsabilidade em eleger este ou aquele participante dependesse exclusivamente do seu voto, escolha e vontade. Passara anos imaginando quando receberia, finalmente, um sinal ou aviso da própria morte, logo que a ciranda da vida por-se-ia fim, mas nunca, deveras, havia cogitado a hipótese de algum dia presenciar, lúcida, um telefonema da vida. Mas o que haveria sua própria vida de querer contigo? Qual o sentido daquele telefonema?
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Mais que depressa, Ana se pos a pensar em tudo o que lhe aflingia, todas as escolhas mal feitas e dívidas não pagas; todos os eu´s te amo já ditos, todas as mentiras contadas a sua tia, toda a não culpa que sentia pelo mal que fazia a si mesma, toda a humanidade que tinha dentro de si.
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Ana lembrara-se da primeira mentira de sua vida. Roubara um caminhãozinho da loja daquela antiga senhora, cujo nome já não vem ao caso. Ao ser repreendida por sua tia, Ana desnudou-se de qualquer mancha culposa e apenas sorriu: - Tia...eu só queria brincar. Eu ia devolver, prometo! Eu só queria ver como era por dentro.
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De fato, como a maioria das mentiras, todas - grandes, pequenas, pretas, brancas, pardas e assexuais - Ana não achava o costume de mentir ilícito, tão pouco vão: ver o que há por dentro de todas as coisas era o seu pior vício; lógica cuja prática fazia com que sua vida não fosse mais, tão perto do que seria, sonâmbulismo diurno sem pulso e suspiro.
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Ana mentia.
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Ana mentia quando dizia "Bom dia", já sabendo que a maioria dos seus dias não haveriam de ser bons ou especiais, tão pouco destinados a algum mistério, fadados ao fracasso. Mesmo assim, Ana ludibriava a todos com a ilusão de que as grandes mudanças se iniciam pela manhã, como o Deus que abençoa os que cedo acordam! Mas, sabia Ana que não havia nada de mágico no universo e que Deus tinha predileção pelos atrasados e mal amados. Ana mentia quando observava com assombro uma criança na rua, ou recém nascida, como se nunca houvesse visto antes um exemplar daquele pequeno rosto, alma e cheiro. Ana achava que todos os recém nascidos eram a prova concreta de que somos mais próximos dos animais do que nos damos conta, visto que pequenos pintinhos têm a mesma alma, cheiro e rosto de bebê - ambos nascem do ovo da vida.
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Ana mentia quando dizia amar. Ana sabia que amor é sentido inefável, inexprimível, mas Ana, mais preocupada com a auto salvação, dizia que amava várias vezes ao dia, ainda que ela própria nem sequer imaginasse que amasse mesmo, pouco importava amar ou não, desde que pudesse, quando bem entendesse, ver o que havia por dentro do amor.
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Chegara o dia. O amor era a partícula comum entre pintinhos e bebês; o amor era a mola propulsora de todas as mudanças desnecessárias e invisíveis. Dentre todas as mentiras que contava, dentre todos os brinquedos que roubara, quando criança, dentre todos os nus que seus olhos já presenciaram, apenas o amor era o artefato jamais desconstruído e experimentado em sua mediocridade e pureza. Ana não sabia o que era amor, mas, desconfiava de que fosse qualquer coisa muito pequena, passível de apreender entre os dedos das mãos.
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O telefonema da vida fizera com que Ana percebesse o amor que já estava. Vislumbrá-lo do avesso, de ponta cabeça, por de trás das roupas requintadas. Ana sabia lidar com a morte; há tempos já se preparava, desde a morte do irmão, para o dia da própria partida - bater as botas, subir ao telhado, ir à casa do Judas.
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Ana só não esperava o encontro.
Adorei essa parte... "amor era a mola propulsora de todas as mudanças desnecessárias e invisíveis".
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