DIA ZERO.
Hoje de madrugada recebi um susto por mensagem. Uma proposta que me parecia fantástica e eterna enquanto eu quisesse e necessitasse, caiu-me por terra por alguns segundos, apenas por coincidência de homônimos. Só me resta esperar; porém, já venho me acostumando a isso há algum tempo. Não é mais sacrifício. O susto passou, adormeci logo após o imbróglio, despertando cedo poucas horas após.
Fui para o trabalho temporário apenas a fim de aplicar uma prova. Cheguei sem atrasos e voltei assim que pude. Ainda me sinto cansada fisicamente. Tenho deixado os amigos em segundo plano, por enquanto, e me debruçado sobre o eterno: A minha família. Aos amigos verdadeiros, espero que o entendam no momento em que voltar... Porque voltarei, a cada dia sinto mais saudade do instante.
Em casa, um stress enorme sobre questões relacionadas ao meu cartão de crédito. Tudo devido a uma compra impulsiva cuja duração era a de um dia e uma noite. Porém, continuou a ser cobrada nas faturas seguintes. Até se pode sofrer por tantas coisas, mas o que nos apresenta à vida adulta (se você é de classe média...) é o sofrimento da conta bancária, esse é superior às dores de amor. Então insisti. Nada resolvido, apenas sugerido, hoje não será um dia para esquecer, senão lembrar: Preciso consertar as pendências do meu cartão de crédito. Depois, cochilei. Reacordada, conversei com minha mãe e brincamos (a que ainda está aqui). Por fim, trabalhei um pouco, bem pouco, admito. E agora escrevo.
DIA UM.
Isso foi há quinze anos. Uma tarde linda. Primeiros dias de verão. Lugar bucólico no qual o tempo é medido pelas rezas, não por relógios (Ganhei um lindo relógio certa vez e tentei usá-lo para me sentir mulher... Mas, infelizmente, detesto relógios, não me forço a usá-los e desconfio da sua precisão. Como mesuram o tempo, se esse não existe? Serei a velha, se lá chegar, sem relógio de pulso, sem relógio nas paredes, sem a medição cruel do meu passar).
Estava na agradável companhia de dois amigos-amores. Ambos se foram há quinze e quatorze anos. Eu era muito jovem e acreditava na ideia de nunca mais olhar para o atrás. Assim, ao me despedir do que partiu primeiro - sem receios, afirmo: De maneira singularmente amorosa - não olhei para trás. Segui adiante na certeza de que nos veríamos tão pronto quanto. O outro, que me acompanhava, mais jovem do que eu e ao mesmo tempo mais velho, olhou várias e várias vezes para trás e me disse que o primeiro, de quem me despedia, não deixava de me observar. Seus olhos eram de um verde-azulado fascinantes, que nunca houve aproximados. Busquei-os durante algum tempo nos de seu sangue, mas nunca foram os mesmos olhos. Pouco nos conhecíamos, mas os olhares eram para mim.
Na imaturidade dos dezessete, não voltei. Não havia smarthphones para uma selfie a dois ou a três. Perdi o momento único de compreender, ou sentir, se aquele ser humano gostava de mim na mesma proporção que eu o amava.
Mas não vi. Escapou-me.
Isso somado a um desencontro anterior, trouxe-me ao longo da vida um arrependimento profundo: O de não ter visto aquele olhar pela última vez. Pensei nisso durante muitos anos e, mesmo feliz ao lado de outrem, às vezes sonho com ele e o olhar não visto. Arrependo-me de não ter olhado para trás. A distância era pequena, fiz por orgulho, para que não me esquecesse nunca. Porém, mesmo para pessoas como eu, tão intuitivas, às vezes nos falham nossas magias de nascença. Eu errei. Eu não sabia que aquela véspera de Natal seria o nosso último encontro da vida. Se tivesse, na época, tal ciência, não só teria olhado de novo, mas dito coisas que não tive a oportunidade de dizer. Coisas que lhe pude escrever e ele leu, mas não teve o tempo necessário para me responder.
Esse episódio, feliz e triste como a vida, foi o primeiro de muitos os quais me ensinaram que olhar para trás não é nada demais. Apenas um pequeno desvio de cabeça e coluna, e que nos pode fazer muito bem.
Portanto, se pudesse escolher um dia para que me fizessem uma lobotomia parcial, um esquecimento fragmentado, escolheria sem pestanejar aquela véspera de Natal.
DIA DOIS.
Isso foi há quase treze anos. Uma manhã ensolarada, mas triste. Na qual deixava para trás os meus amigos, a minha vida de então, a minha história de dezoito anos e alguns meses. Ainda imatura, não tive a força suficiente para realizar sozinha o milagre de permanecer na minha terra. Fui obrigada a me mudar de estado e, a partir de então, apesar das felicidades e encontros vividos, sempre me questionei se não haveria sido melhor ter lá ficado. Trabalhado em alguma loja dos inúmeros shopppings da minha cidade pétrea, cinza e agaroada, pagando com sacrifícios uma faculdade particular (possivelmente também de Letras, caso não passasse na USP. Lá nunca tentei. Tentara Medicina, para me distrair do futuro incerto que estava por chegar). Moraria com minha madrinha, contudo manteria por perto os amigos da vida toda e parte da minha família. Só estaria longe dos meus pais. Longe do meu eterno.
Fraca, cedi.
Já não sei se ambos - pai e mãe - hoje sentem que tomaram a melhor decisão. Percebo um arrependimento nunca verbalizado e que nunca o será, porque nenhum pai e mãe é capaz de considerar que errou, em se tratando dos erros que envolvem a vida de uma filha. Levei muito tempo para me acostumar à nova realidade e, quando acostumada, sinto que a perdi novamente, há exatos dois meses. Neste caso, trata-se de um paradoxo:
Ficando, eu não seria eu e teria tido outra vida. Partindo, o que fiz, tornei-me o eu de hoje em outra vida também. Nunca saberei se a anterior seria mais triste ou mais feliz. Quando muito infeliz, penso que deveria ter permanecido naquela. Quando em condições normais de temperatura e pressão, penso que também não era ali o meu lugar, tampouco onde agora estou e que talvez não existam lugares suficientes para um alguém como eu, só morada em lugares afetivos (mas isso descobri um dia desses).
Certamente, a primeira opção teria me evitado uma série de tristezas, sofrimentos e desilusões. Sinto uma pequena raiva ao nisso pensar. Como nada em absoluto é exato, a segunda opção tomada me trouxe outros benefícios: práticos e poéticos, fugazes e eternos. Alegrias talvez nunca experimentadas se em minha terra houvesse ficado, ainda que as grandes tristezas igualmente não aconteceriam, pois os encontros não existiram. Hoje não seria hoje. Seria outro hoje. Um hoje que não posso acertar, apenas imaginar nos momentos de dúvidas, esses que todos sentimos às vezes.
Portanto, se pudesse escolher um dia para que me fizessem uma lobotomia parcial, um esquecimento fragmentado, escolheria com pestanejar o dia dois de agosto de 2004.
BRILHO ETERNO.
Com pestanejar escolheria uma lobotomia parcial. Verificando no dicionário mais próximo:
"[...] Lobotomia ou Leucotomia é uma técnica de intervenção psicocirúrgica feita no cérebro, que consiste na retirada total ou parcial dos lóbulos cerebrais. [...] Com a descoberta dos primeiros medicamentos antipsicóticos, a lobotomia passou a entrar em desuso. Em meados da década de 1950, esta técnica foi banida na maior parte dos países do mundo. [...] Em alguns casos, a lobotomia era usada como um método de lavagem cerebral. Por exemplo, um indivíduo saudável era submetido a esta técnica, com o objetivo de “danificar” propositalmente o seu cérebro e garantir um maior controle comportamental desta pessoa."
As lobotomias para ambos os dias descritos me serviriam para esquecer as lembranças dos meus fracassos e desilusões. Obviamente nunca faria tamanho retrocesso! Mas, na possibilidade de ser "cobaia" em algum procedimento experimental, apagando da memória apenas alguns momentos, os mais tristes, os rompimentos, os "aos-deuses", é possível que tentasse. É muito triste viver na certeza da incerteza do outro. São muito vazias as máximas dos nossos filósofos de Facebook que não sabem doer, que fogem ao avistar, de longe, a sombra do sofrimento. Até os filósofos da leveza mentem para nós que os lemos. Vendem-nos a leveza da vida mas todos experimentaram o trágico da existência (talvez por isso sejam leves, essa hipótese é só minha). Faria ou não faria? That´s the question.
SEM LEMBRANÇAS.
Sim e não.
Confesso que sinto dúvidas sobre o DIA UM.
Mas sobre o DIA DOIS... Nunca poderia. Mesmo que permaneçam para sempre apenas como lembranças e não como desejos que retornam à pele e à vida diária, isto é, que nunca voltemos atrás... Em meio ao caos, as delícias concretas, esquecidas nas horas de raiva, mas relembradas em dias futuros, também nos seriam removidas eternamente.
Pergunto-vos, leitores (aos mais velhos. Aos jovens à juventude! Que por si só basta): Conseguiríeis viver uma vida tão oca? Sem lembranças e esperanças? Alguns conseguiriam. Eu não: "À magia da verdade inteira todo poderoso amor".
Ainda, o DIA UM:
Aquele abraço último também seria esquecido.
ÀS 23:02.
Bebo em uma caneca (verde) o meu café com leite de todas as noites. Depois, à minha mãe; Após, um pouco de TV ou internet; e, por fim, uma noite com lembranças e brilho eterno por opção.
Fontes: Sobre Lobotomia: https://www.significados.com.br/lobotomia/. Trilha sonora: Everybody´s Gotta learn sometimes (Beck - para Eternal Sunshine of a spotless mind). Imagem: https://medium.com/@Montuan/brilho-eterno-de-uma-mente-sem-lembran%C3%A7as-d5c57e11d634. Citação: música Copo Vazio, Gilberto Gil.
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