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Não há ritalina, ansiolítico, clonozepam ou derivados que me sirvam agora. Não tenho escolha, a não ser o copo de vidro sobre a escrivaninha, copo contendo substância danosa cujo nome, CocaCola, lembra-me gasolina, como grávida que sente os primeiros desejos inconsequentes e insanos. Estou grávida de uma porção de ideias e gentes, como se fosse meu ventre uma boca divinal da qual expelisse todos os deuses greco-latinos responsáveis pela literarização universal. Também como Gaia, dentre os doze filhos gerados pela ventre-boca, escolho Mnemosine como a única capaz de uni-los a todos, porque a memória é a ritalina do olhar inquieto, quando este mesmo olhar se perde pelo caminho, e são tantos caminhos a serem perdidos que melhor seria, oh vida!, que tais caminhos conduzissem-nos ao mesmo lugar, sem maiores complicações....(Eis o mistério da fé, disse).
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Sou fascinada pela ideia de Morte, porém proponho-me a refletir sobre a morte em seu avesso mais profundo, a vida. Vivemos à espera da morte, cultuamos nossos deuses a fim de que, por barganha ou fetichismo, conduzam-nos à nuvem mais aconchegante do além-camada-de-ozônio, creche de almas. Lutamos pela faixa de gaza, articulamos atentados terroristas, reunimos-nos semanalmente no núcleo de estudos nipônicos, instauramos a ditadura da cultura da vida, quando na verdade esta vida é só a cara de uma coroa-morte, estatuto do nascituro, estatuto da homofobia, estatuto contra a mulher, estatuto a favor da redução da maioridade penal, estatuto do estatuto do estatuto do estatuto do estatuto...
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A vida chega a ser mais simples do que tudo isso. Sou contra o aborto? Que não aborte, eu! Sou contra o casamento gay? Que não me case, eu, com uma mulher. Sou contra a felicidade? Que não estude, eu, Letras - Artes e Filosofia. Mas não permita, eu, que as pessoas podem suas asas em função do meu cárcere.
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A minha memória está cheia de vida e de morte, de acontecimentos grandes e profundos, acontecimentos pequenos e curiosos dos quais selecionarei cinco para esta crônica noturna.
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Há poucos dias fui a sala de um professor em busca de bibliografia, alento e um pouco de preenchimento de ócio. Curiosamente, notei que havia em sua sala: duas bicicletas, um armário caindo aos pedaços, um pôster em tamanho grande do Homer Simpson, um mural repleto de parafernálias, uma gaveta velha que mal cumpria o seu único papel no mundo, o de fechar e abrir, uma recordação da esposa - também minha amiga - uma lembrança de Portugal, um tablet, um chão muito cinza, um óculos de grau, uma camisa marrom, uma impressora ruim e uma profundidade de reflexão e alma nunca antes notada por mim, que já havia sido sua aluna. Em poucos "clics", em poucas palavras, abriu-me tal homem uma janela de possibilidades e a esperança de encontrar na docência a paixão pelas coisas que venho buscando. Aquele homem, naquela sala engraçada, salvou o meu dia.
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Faleceu neste fim de semana a mãe de uma amiga. Talvez por diabetes, não sei exatamente o enquadre de complicações. Fomos ao velório e enterro, precisava respirar toda aquela circunstância para me fazer crer que a morte existe, e só por isso a vida se faz o que ela é - dura, doce, demência e delírio. Um delírio cheio de cor. Minha amiga chorou no seio da morte enquanto todos assistíamos. Chorou no seio da alma da morte, deu de cara com a morte: - Oi, morte, eu sou fulana de tal. Na mesma capela e simultaneamente era velado um primo de segundo grau que descobri por acaso, só porque havia ali uma série de conhecidos, como minha cabeleireira, a prima de sei lá quantos, o terceiro ex-namorado de minha mãe e , obviamente, a angústia. Percebi nesta cena quotidiana que estamos interligados, todos juntos em fila indiana a caminho da angústia. É possível que eu desista, um dia, de voltar a minha terra natal se me der conta em tempo de que toda angústia é universal e eu precisaria me dividir em 34567927909 seres humanos para respirar e curar o coração alheio.
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Entre coisa e outra, brigamos - ele e eu. Brigamos porque há alguns meses, antes do selo apocalíptico, levou a sua casa uma amiga com quem já namorara anos antes de me conhecer. A amiga, muito bonita, muito brasileira, não é fruto da minha raiva, senão o fato de que poderia ter ficado em um hotel haja vista que não estava eu lá, estava eu cá, decidindo entre vida e sobrevida; imaginando que transavam loucamente enquanto eu assistia a minha novela da vez. Quando veio para almoçar, já em nossa cidade, deixei ambos a sós. Quando visitou a casa, a mulher e o estrangeiro, senti-me periférica e ausente. Não há sexo que preencha a sensação da ausência e inefabilidade. Aprendi nesta terceira cena que o único amor pelo qual se vale a pena lutar é o amor por elefantes. Não há animal mais gracioso neste mundo.
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A quarta cena. Há uma mulher que me atormenta em sonhos e vida real. Temos pontos em comum, mas uma longa distância nos separa, além da ritalina: para mim é possível exprimir vida da morte, porque a arte é a expressão da preocupação do homem e alegorização do desconhecido, única arma que pode nos safar de uma vida acinzentada. Já para ela, vida se extrai de vida, ainda que vida morna. Seja qual for a escolha do leitor, vida morna ou morte vida, fato é que assinei a sentença de vida e vida e vida: Direi a ela, com todas as letras, morfemas, fonemas e afins que tal velhinho é a minha estrela maior, é a ele - e apenas a ele - a quem posso dedicar qualquer linha mal escrita que saia de minhas mãos. Porque nos amamos desde longa data, desde quando era eu apenas doze. Aprendi nesta quarta cena que o único amor pelo qual se vale a pena lutar é aquele que te antecede em cinco séculos de nascimento.
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A quinta cena é recém parida. Uma de minhas melhores amigas, senão irmã, grávida. As circunstâncias não serão as mais favoráveis, ainda que seja - tal amiga - uma das mulheres mais inteligentes, brilhantes e esforçadas que conheci nesta cidade (apesar de não cozinhar, lavar louça e ser dona de um animalzinho medonho e esquizofrênico). Como se fosse eu mãe, senti até a ponta dos dedos uma alegria tão pura, tão lívida, tão fetal. E me cobri de amor, como se houvesse circundada à humanidade uma colcha de retalhos coloridos. Compartilho de sua alegria, de sua tristeza, de sua morte e de sua vida. Compartilho do seu tempo, querida irmã, somos e estamos no mesmo tempo: somos a escrita personificada, somos os heróis - com ou sem ritalina, ansiolítico e clonozepam. Somos, ao mesmo tempo, todas as cenas do mundo no curto espaço de uma tragédia aristotélica. (E a noite se fez dia, disse).
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Amanda Lopes de Freitas é mestranda em Estudos Literários e escreve para o Sofia de Buteco desde 2009. Não gosta de lecionar, mas o faria por dinheiro (atualmente se encontra desempregada). Gosta de ler, estudar, escrever e só por isso fez Letras, mas na verdade gosta mesmo é de hospitais e seu sonho é trabalhar em um. Também quer publicar um livro de crônicas. Está perdida na vida, mas tem esperanças em se encontrar até os trinta! Quer ter dinheiro fácil para viajar o mundo e criar os filhos que ainda não tem. Interessa-se por: a vida alheia, todas as formas de escrita, hospitais, doenças sanguíneas, oncologia, medicina preventiva, morte, desastres, Deus, Diabos, religião, literatura, psicanálise, Idade Media, Ballet Clássico, Argentina, Relações de poder (injustiças sociais), música, cinema, pessoas, facebook, investigar às amigas do namorido, ficar à toa e sonhar.
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