sábado, 21 de junho de 2014

AGRIDOCE

Foto de Frederico Baptista.
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E quando acordo cedo
De uma noite sem sal

Sinto o gosto azedo

De uma vida doce

E amarga no final
(Agridoce- Pato Fu)



Entrei na página do yahoo agora há pouco a fim de ver a lista dos profissionais mais depressivos do mercado de trabalho, quando sou surpreendida por não constar, na tal lista, a carreira de professor - como em tantas outras listas já criadas. A verdade é que tenho prazer em ler categorizações de qualquer   espécie porque gosto de me auto-classificar em algum grupo, ter um  sentimento de pertença em relação ao mundo: sou professora.
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Mais um post pessimista? Espero que não. Há meses não escrevo no Sofia e por isso, gostaria de falar das minhas viagens futuras, minhas novas perspectivas profissionais, o andamento da minha vida amorosa....meus planos de casamento na Igreja. Mas como todas essas coisas só acontecem n'uma dimensão virtual - a da minha imaginação - só me resta escrever sobre a realidade, a minha - ao menos.
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Trabalhar em uma Escola do Estado, sendo essa a melhor escola da região, veio-me como um presente; os dois problemas são: a região é a da zona da Mata Mineira e o presente é de feitio grego. Gosto muito dos meus alunos. A maioria deles é muito inteligente, muito curiosa, muito emocional, alguns, inclusive, são brilhantes...O problema todo está na superlotação das salas-de-aula e a minha teoria sobre instinto rebanho. Posso dizer que devido a minha curiosidade humana, isto é, o meu prazer em conhecer gente, já conversei com quase todos individualmente e não há como não se apaixonar por cada um. O desafio é quando se unem, quarenta alunos, gritando, jogando giz, desrespeitando o professor - no caso eu, entre outras coisas.
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As pessoas da coordenação são muito gentis, principalmente os colegas professores que, à mercê do mesmo naufrágio , o da educação, ajudam uns aos outros. Ainda assim é difícil: provocar a simpatia alheia, eu que sou chata e tímida por natureza, principalmente das senhorinhas e mocinhas amargas que trabalham ali e que sentem prazer em omitir informações importantes (exceto uma jovem em especial, a quem muito admiro). A minha grande decepção chegou a cavalo no dia em que, ao propor um seminário para as minhas turmas, descobri um jovem que não sabe ler. Um jovem em idade e "turma" avançada. 
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Não só isso, enquanto o garoto esforçava-se para balbuciar timidamente as primeiras silabas, os colegas - do próprio grupo e do restante da sala de aula - riam do sujeito. Não entendendo o que acontecia, parei a aula. "Ele não sabe ler professora". Há 1 mês e meio trabalhando naquela escola, não havia me dado conta de que o jovem não sabe ler (na verdade sabe...). Senti-me um lixo; um zero à esquerda da humanidade, uma infeliz. Se não fosse o medo de altura e água, vontade não faltou em me jogar da primeira ponte mais próxima, morrendo como mártir da educação.
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Estava prestes a chorar quando um dos colegas dele, após o meu esbravejamento (diário....), disse-me em bom tom: "Ele não sabe ler porque você não cumpriu a sua obrigação". 
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STOP
O MUNDO PAROU.
OU FOI O MEU CORAÇÃO?
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Fiz um pequeno escândalo e comecei a chorar. Quase ninguém compreendeu o choro, por demais conotativo que foi: não chorava por haver sido desrespeitada, mas pela pena que senti daqueles 37 indivíduos. Cancelei a aula e conversei com o garoto em particular que, de tão generoso, convenceu-me a dar uma chance aos colegas da "pá virada". Gentileza ainda me emociona. No fim das contas, quase todos passaram "de bimestre" - e com notas boas - porque o importante ali não é o saber, e sim o fazer.
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A segunda decepção veio a galope. Criei um sistema avaliativo no qual a distribuição de pontos consistia, além das avaliações previstas e das atividades curriculares, em dois pontos de conceito: um pelas atividades feitas no caderno e outro por comportamento. Além do seminário que descrevi acima, cuja qualidade não levei em conta; quem o fizesse conseguiria oito pontos de vinte e cinco. Pois, acreditem, leitores....alguns dos meninos se recusaram a realizar as atividades porque sabiam que teriam direito, ao findar do bimestre, a uma recuperação de vinte e cinco pontos. Em outras palavras: não importa se o menino ou menina esforçou-se ao longo de dois meses, obteve média nas avaliações, absorveu o "conteúdo", desenvolveu as capacidades esperadas. Aquele que não o fez, receberia os mesmos vinte e cinco pontos com uma prova tosca, um teste de recuperação. 
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Chamaram-me, a coordenação, para conversar. Explicaram-me que não tinha a "liberdade" de distribuir 1 ponto em 2 porque, sendo abaixo de 60%, o jovem ou a jovem teria direito a também uma recuperação para esses dois pontos. Entregaram-me um nariz de palhaço, restado das festas de carnaval anteriores, e me pediram para que desse outra recuperação. E assim, com esse sistema, lá se vão outros meninos e meninas para o nono ano, sem saber ler, sem saber apresentar um seminário, sem saber o que é respeito ao próximo, sem saber o que é a vida. Afinal, escola não é para a vida, e sim para os dados estatísticos das avaliações governamentais.
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Essas decepções causaram-me um grave problema no estômago. Problema imaginário, como tudo o que me compete, vivo uma vida imaginária. Nunca pensei que aos 28 anos estaria vivendo essas situações. Tudo o que queria, com meu curso de Letras, era aprender a escrever bem e conhecer a literatura mundial; nunca me imaginei numa sala de aula, ouvindo um jovem de 15 anos gritando comigo " Ele não sabe ler porque você falhou".
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A minha vontade era a de jogar tudo para o alto e viajar para a Europa nessas férias. Mas não posso. Por quê? Porque não tenho, ainda, outra formação. Desisti do leitorado em Timor Leste, por motivo de "força maior"; não passei nos dois concursos seguintes que prestei; há meses não estudo línguas, o que somado a dois curtos intercâmbios dariam-me a possibilidade de trabalhar como professora nesses cursinhos de bairro ou quem sabe como secretária (não desmereço essa profissão).
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Decidi continuar (antes que leiam  esse texto e me demitam por justa causa).
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A parte doce, no entanto, é ver como é legal aqueles que se esforçam gratuitamente. Tenho uma aluna (tenho muitos outros, mas uso essa como exemplo), que após ler o Sofia (contra a minha vontade), criou um Blog onde posta crônicas de Rubem Braga, cronista que eu a apresentei através da dinâmica dos seminários. Também me sinto feliz quando algum deles me conta sobre seus "complexos problemas amorosos", confiam em mim, ou mesmo juram de pés juntos que não colaram na prova de português. Um deles, um garoto, sempre me dá um beijo e um abraço na minha chegada e despedida.....e quando faltei, nas últimas semanas, para o concurso que prestei em Belo Horizonte, escreveu-me preocupado, perguntando se havia deixado a escola (o concurso se deu dois dias após a tragédia do seminário descrito acima).
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Agridoce.
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É impossível não se emocionar. Embora eles mal me percebam, reconheço-me em cada um deles, inclusive nos mais rebeldes, deles noto a criatividade necessária para bons escritores e leitores. O que falta então? Confiança! Uma escola cheia de grades, em que os alunos mal podem usar a biblioteca sozinhos, em que há dez recuperações para dez recuperações, para dez recuperações - não me parece um lugar muito atrativo para se estar.
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Gostaria de partilhar com eles coisas da vida, textos da vida, imagens da vida, além do livro didático que - na preguiça de trazê-los - fingem que o cachorro comeu ou esqueceram na casa da namorada (muitos têm namorado e namorada).
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Para variar, o problema está em mim. Não nasci para ser professora, e quando me lembro da minha experiência de Mestrado, dos últimos dois anos, sinto vontade de me jogar (mais uma vez) da ponte mais próxima, não o fazendo pelo medo de altura e água. É certo que entrei nas aulas de natação do meu bairro, e estou, há um ano, tentando tirar carteira.......mas nada disso é desafiador o suficiente. Sobre a experiência de Mestrado, merecerá uma postagem à parte.
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Aquelas crianças, assim como eu, necessitam desafios.
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Recentemente, meu companheiro e eu entramos em uma disputa dramática sobre ciúmes versus individualidade. Enquanto não me decidia se ia ou não a Timor, ele comprou um ingresso para a COPA, acompanhado de um amigo. Ora, gosto muito desse amigo em questão, o problema todo está em que antes de que houvesse COPA, eu pedi a ele que nos comprasse ingressos, porque gosto de futebol e nunca fui a um estádio. Um dia, em que tivemos uma briguinha, ele comprou o tal ingresso. E foi. Estou tentando perdoá-lo, mas esses dias tive outras novidades: a de que pretende visitar uma amiga (sem mim)....e a de que viajará sozinho durante um mês para o seu país natal. Decidi não acompanhá-lo, para não deixar o meu trabalho. Afinal, é a única coisa que tenho (ou tinha) em mãos. Disse-me, no entanto, que seria uma viagem chata, haja vista que todos os seus amigos estariam viajando para outros lugares. Há poucos dias, porém, comentou que devido a minha ausência  os amigos transatlânticos dele estão pensando em organizar uma viagem só de rapazes, sem as esposas. Meu companheiro, muito independente, muito leal às amizades, não entendeu o meu desconforto e esbravejou como se eu estivesse totalmente errada por me sentir...excluída. Senti-me como uma aluna do oitavo ano que, não sabendo das recuperações paralelas, entrega todos os trabalhos em dia para conseguir 25 pontos, mas é surpreendida ao descobrir que haverá outras 25 recuperações e que seu esforço foi em vão...
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Agridoce.
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Para mim felicidade é a conjugação de seis coisas: poder escrever (um livro, uma coluna de jornal, um texto que jamais será lido, uma crônica), trabalhar em hospitais ou com pessoas à beira da morte; dançar, construir uma família (marido, filhos, cachorro), mudar-me da cidade onde vivo hoje e viajar pelo mundo. Há vinte e oito anos tenho recalcado e deslocado essas coisas em outras: Formei-me e Letras e terminei um Mestrado, mas só tenho um Blog; Não trabalhei em hospitais, mas escrevi uma dissertação de mestrado sobre a Morte, além de haver trabalhado como voluntária em três instituições (que me permitiam, ora ou outra, passar noites em hospitais); Fiz Ballet clássico até os 18 anos e hoje só me restou os forrós familiares ou no único bar da cidade; Casei-me por circunstância, mas não constituí família ( e não me considero casada literalmente); vivo há quase dez anos na mesma cidade que detesto; viajei à Argentina em 2012 e foi muito legal.
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Preciso fazer um mapa de sala, 
(ou de vida?).
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Agridoce.