terça-feira, 29 de abril de 2014

Precisa-se

Besame mucho - foto de Vanessa Trancoso




O  amor  precisa de um amorado.

domingo, 20 de abril de 2014

Tempo de despertar...

20-abril-...


"A morte já não mata. Não mata mais a morte. 
No chão banhado em sangue. A flor brota mais forte."
(Ofício Divino da Juventude)


Independente de:
Religiões ou religiosidades,
Excesso ou falta,
Sincretismo ou Ateísmo,
Círculo ou Quadrado,
Coelho ou Galinha,
Morte ou Vida,
O importante é:
Renascer....

Feliz Páscoa!


quinta-feira, 17 de abril de 2014

TRIBUTO A GABRIEL GARCÍA MARQUEZ


Me alugo para sonhar


Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros, recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança. O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.

Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto. Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser humano encantador. E também um dos mais temíveis.

Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:

— Eu me alugo para sonhar.

Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum, que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe, por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de vaticínios.

— O que esse sonho significa — disse — não é que ele vai se afogar, mas que não deve comer doces.

A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.

Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a verdade: "Sonho". Só precisou de uma breve explicação à dona da casa para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher alegre e apaixonada por música romântica de câmara9 e duas crianças de onze e nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de decifrar o destino diário da família através dos sonhos.

Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a família até o fim de seus sonhos.

Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia da cerveja, sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de tempo.

— Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você — disse ela. — Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco anos.

Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me embarcou no último trem para Roma. Eu fiquei tão sugestionado que desde então me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci. Ainda não voltei a Viena.

Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou conosco uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual se inventava a vida.

Não conheci ninguém mais parecido à idéia que a gente tem de um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras foi exemplar. Comeu três lagostas inteiras, esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um, com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em voz muito baixa:

— Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.

Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas, três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo indicador.

Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa, e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações de sonhos.

— Só a poesia é clarividente — disse.

Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas, fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse isso a ela.

Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa, Frau Frida havia mudado de assunto.

— Aliás — disse ela —, você já pode voltar para Viena.

Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde que nos conhecemos.

— Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei — disse a ela. — Por via das dúvidas.

Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos. Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro impresso na face.

— Sonhei com essa mulher que sonha — disse.

Matilde quis que ele contasse o sonho.

— Sonhei que ela estava sonhando comigo disse ele.

— Isso é coisa de Borges — comentei.

Ele me olhou desencantado.

— Está escrito?

— Se não estiver, ele vai escrever algum dia — respondi. — Será um de seus labirintos.

Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada, e começou a escrever versos fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio buscamos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas quando já íamos embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.

— Sonhei com o poeta — nos disse.

Assombrado, pedi que me contasse o sonho.

— Sonhei que ele estava sonhando comigo disse, e minha cara de assombro a espantou.

— O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos, infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.

Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera. Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração. "O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela". E prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreendentes, mas sem uma pista que me permitisse uma conclusão final.

— Em termos concretos — perguntei no fim —, o que ela fazia?

— Nada — respondeu ele, com certo desencanto. — Sonhava.

Gabriel García Marquez. Março de 1980

......
Que a Literatura, materialização do sonho, seja o antídoto para a  imortalidade de García Marquez; homem que, de linha em linha, alugou-se para que pudéssemos sonhar, acordados e de pés no chão.
(Colômbia, 1928- Cidade de México, 2014).






1. Entrevista a Gabriel García Marquez (1982)   

2. Trilha sonora do Filme Love in te Time of Cholera, dirigido por Mike Newell, 2007, baseado na obra de García Marquez, El Amor en los tiempos del cólera(1985).
                                   

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Oração para as almas desconsoladas....





TREM DAS SETE - RAUL SEIXAS



...para que encontrem o caminho.

domingo, 13 de abril de 2014

Arrumando o armário

"Querer abraçar o céu". Foto de Isabel Daniel

Tudo o que queria neste momento era a foto literal de um armário desorganizado. Disseram-me, certa vez, que se pretendermos mudar as nossas vidas, é preciso antes organizar o nosso armário, ou guarda-roupas, ou caixa de papelão onde guardamos nossas lembranças. Fato é que não consegui uma foto "literária" que transmitisse a experiência desejada, o que me fez colocar a que aí está, embora nada tenha que ver com o assunto deste primeiro post do Sofia de Buteco, ano V. A menos que, apelando a Freud, meu  padroeiro das causas inconscientes, analisássemos: Se queres abraçar o céu, antes, organiza-te tua casa, teu armário, teu guarda-roupas, tua caixa de lembranças. Pensando assim, estamos no caminho certo.

Neste quinto ano de Sofia, após meses sem escrever devido ao preparo da minha dissertação de mestrado, optei por realizar outro tipo de escrita, mais engajada, mais atual, menos subjetiva. Não sei, sinceramente, qual foi o último post escrito, porque deletei alguns que diziam o que não diziam e vice-versa. A subjetividade para um escritor é muito perigosa, ainda mais para um pseudo-escritor, como eu, cujos eu-líricos estão sempre num ringue de MMA, a ver a voz predominante. Depois que minha cunhada, há um oceano de distância, desvendou-me um segredo, destes de entre-linhas, resolvi repensar os meus métodos de escrita, e, assim, de agora em diante, Sofia tratará de temas sociais e políticos e de circunstância - além de receitas culinárias; porque sim, caro leitor: estou aprendendo a cozinhar.

Antes, contudo, é preciso arrumar o armário; ou seja, contar ao querido leitor o que ocorreu na vida da autora, porque as afinidades criam essas obrigações: a de explicar-se. Arrumar o armário é botar a casa em ordem, antes dos próximos passos.

N'outro dia, estava caminhando pelas proximidades do Colégio Viçosa, quando um transeunte, desconhecido, parou-me e disse: 

- Você tem 28 anos, é muito amada, mas faz muita guerra. 
- Como o senhor sabe?
- Sou cartomante....

(quem me conhece sabe que amo cartomantes, aliás...sou uma em potencial)

- Deixa eu te perguntar uma coisa, então....
....Nem sequer me ouviu; saiu caminhando, lentamente, com um sorriso no rosto....
....

Partindo disso, falemos antes do amor, para findar com a guerra - sempre mais interessante.

Fui aprovada por unanimidade em minha defesa de mestrado (embora ache a unanimidade burra, e que em bancas de defesa isso é apenas uma fala de efeito para fazer chorar os pais e cônjuges que suportaram os ataques de histeria do mestrando ou doutorando ao longo dos dois ou quatro anos....). Para que problematizar a felicidade? Comprei um vestido vermelho e me pus a falar horas a fio sobre o tema que mais gosto na vida: Gil Vicente, Morte e Moralidade. Aprovada com louvor, passei - em apenas uma semana - de mestranda, a quase desbravadora do mundo, para finalmente desempregada.

Explico mais tarde.

Ainda sobre o amor. Fiz as pazes com os amigos com quem estava brigada. Chega um momento da vida, antes dos 30, que os indícios de solidão nos fazem mais amáveis, pouco importando quem estava certo ou errado numa discussão. Meu coração está afável e aberto; feliz por ter recuperado uma amizade que tanto me fez bem, há alguns anos. Hoje, somos diferentes em quase tudo, mas aprendi a respeitar, o amigo, porque a única coisa que se leva da vida é o nada; mas, antes do nada, o último rosto a ser visto deve ser o de alguém muito amado, e só por isso relevei as minhas broncas, porque hoje sou só coração.

Minha relação amorosa entra nesse ínterim. Contrariando as minhas expectativas, lá vão dois anos de enrolamento, mais dois de namoro e alguma coisa de pseudo-casamento. Passamos por muitas dificuldades, brigas, quase rompimentos. Mas o que é o amor senão a necessidade de perdoar-se? Eu me perdoei pelos meus erros - e só poso falar sobre mim. O plano agora é assumir a vida matrimonial, ainda que seja essa - a vida de casada - um pouco alternativa. Não sei se casei, se amiguei ou se encontrei um amigo que amo. Numa lista de opções, escolheria a opção "outro", porque não gosto de rótulos de qualquer espécie.

Sempre que posso, preenchimento de formulários, questionários, comentários em sites, reserva de passagens, escolho a opção "outros". Acho muito legal a ideia de que os motivos que me levam a tal situação não estão listados em universo algum, porque são parte do grupo inacessível "outro". Tipo: solteira, casada, separada, viúva, (X) outro; turismo, estudos, visita a familiares, (X) outro; Heterossexual, Homossexual, Bissexual, Transexual, (X) outro; ....e por aí vai!
...
Ser outro(a) é uma felicidade.

Pois, casmurrices à parte (porque somos dois bicudos se beijando), perdoamos-nos. E o amor, pelo menos da minha parte, cresce a cada dia, fazendo valer a pena as escolhas feitas, antes conflituosas. Abri o coração, desnudei-me. Aceitei os hábitos, apaixono-mo pelos amigos do outro como se fossem meus. Ainda há, claro, a dificuldade do ciúme quando certas circunstâncias se dão. Mas,diante disso, a vida - de tão circular - devolve a guerra na moeda do amor, e diante de tal milagre, só nos resta aceitar....e nos dar as mãos.

Meus pais estão muito bem e aparentemente felizes. Digo "aparentemente" porque desconfio de toda felicidade e simpatia plenas. Detesto pessoas extremamente simpáticas e nesse sentido agradeço a vida por ser paulistana, criada por dois mineiros desconfiados, e vivendo há nove anos numa cidade rural. Ruralíssima, com uma universidade no meio, tal qual bolo floresta-negra com uma vela desforme em seu meio, sem propósito algum. Voltando ao amor, meu casal de velhinhos vai bem. Ele, recuperando-se das cirurgias, estudando inglês e matemática, divertindo-se na casa dos cunhados, tios avôs e irmãos. Ela, sem mais as manias que nos irritavam - como a da limpeza da casa; cada vez mais jovem, bonita, alegre, fazendo aulas de natação e de hidroginástica. Cuidando da irmã e dos sobrinhos.

Sobre os sobrinhos. Uma pena eu não ser espírita e, confesso que ultimamente estou mais para "atéia" que qualquer (x) outro. Uma pena porque o amor que sinto por aquelas crianças transborda, transcende, um amor de mulher sem filhos e sem irmãos. Daria a minha vida por cada um deles. Daria o melhor ovo de páscoa, ainda sabendo que é o preço de uma picanha. Porque crianças, assim como eu, dão mais valor ao embrulho do presente que o presente propriamente dito. Deem-me de presente uma caneta bic com um embrulho caro, que sorrirei como criança e seu doce. Há coisas que são assim, que nos empurram, levam-nos como marcas de personalidade, vergonha tenhamos ou não.

Sou toda amor, ultimamente. Até as ruas da cidade que odeio tornaram-se mais belas, os transeuntes mais belos e misteriosos, como se ainda houvesse o que descobrir, após nove anos vivendo no mesmo feudo. Meu coração habita a selva de pedra paulistana, mas é possível que , de tão grande, caiba um pouco de doce de leite em minhas veias.

Sobre a Guerra.

Recebi uma proposta irrecusável de trabalho em outro país, por seis meses. A que poderia ser renovável por mais um ano e meio, mas já de antemão propus-me seis meses. Seria uma espécie de leitorado, o trabalho dos meus sonhos: ensinar língua portuguesa como pretexto para conhecer novas culturas e gente que realmente vive; gente que lutou por mais de trinta anos por sua independência. Um povo que luta por sua independência, com tanta alma, não é um povo qualquer; o sorriso daquelas crianças é a prova disso.

Por que recusei e por que me arrependi.

Recusei por medo. Medo absurdo de uma viagem aérea de 30 horas, medo de habitar um país onde existe, ainda que remota, a possibilidade de um tsunami, um terremoto. Sempre fui muito independente no que diz respeito à morte. Nunca tive medo de morrer, de andar só e nua pelas ruas de São Paulo ou pelo caminho de uma "boate" viçosense até a casa dos meus pais, às 5 horas da manhã, sozinha. Nunca tive medo, mas Freud me o mostrou em sonho.

Levei tempos para enviar os meus documentos assinados e, antes de fazê-lo, desisti. Enviei um ofício a tal agência de fomento informando a minha desistência.

Por que me arrependi.

Foi só depois de fazê-lo que me dei conta de que a morte está em todo lugar e que não seria, então, uma bobagem perder tal oportunidade por medo de se arriscar? Seria! Escrevi um novo email, arrependendo-me, sobre o qual terei amanhã a minha resposta. São 5% de chances de que voltem atrás. Eu sei. Disseram-me as boas e más línguas.

Mas o sofrimento causado por essa escolha é o sinal de que ainda há esperança. De repente, vi-me envolvida com a luta daquele povo e o sorriso daquelas crianças, algo mais profundo que a bolsa excepcional que eu receberia ou qualquer desastre natural. Quem re-contrataria uma pessoa que sofre de medo?

Eu. Porque há o medo que te paralisa; mas há também aquele que te ensina, que te faz perder para, finalmente, com a cabeça no lugar, pesar nos prós e nos contras da vida.

Desde que tomei a primeira decisão - a de desistir - entrei numa terra sonâmbula da qual saio aos pouquinhos. Uma tristeza enorme, vontade de nada. Descobri que queria e precisava muito dessa viagem, mas o medo me impediu. Caso não reconsidere - a tal agência de fomento - o meu arrependimento, é possível que eu chore por mais alguns dias, mais algumas semanas, tente o próximo edital - que certamente não passarei; arrependa-me amargamente.

Mas assim como desvendou aquele pobre cartomante, amor e guerra coexistem no meu coração....e terei que lidar com isso para sempre. Neste livro sobre o aprendizado, vi que nem o amor e nem a guerra te fazem melhor ou pior. Aceitar-se como és é a melhor opção. Só assim, a calma das coisas controla o medo da vida (o que ainda está, mas já não suficiente para que me faça desistir, se conseguir outra/esta oportunidade).

E parei aqui. Neste momento da vida. Nesta linha.
Arrumando o armário da consciência, limpando com aspirador de pó tudo que é medo.

A gente aprende com os erros.....
...e o meu cigarro acabou! Oh céus....

Para finalizar, aceito sugestões de novos layouts, porque este acima está uma merda.

Amém.




sexta-feira, 11 de abril de 2014

Onze de Abril...


"Nadie es más solitario que aquél que nunca ha recibido una carta."
(Elias Canetti)



de 2003.