domingo, 27 de janeiro de 2013

Infinitopéia

*A infância. José Carlos Barral.
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Seria a "certeza" um atributo da infância? É normal saber o que "se quer ser" na infância, para depois nos esquecermos por completo? Acontece também com você, leitor, o desconfiar de que se era mais esperto aos nove? Antes eu sabia, hoje já não sei e o amanhã é uma infinitopéia. 
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A pergunta mais melindrosa....."O que você quer ser quando crescer?".
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- Esqueci, tia.
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(Ato falho ou Auto sabotagem?). 

DEADLINE

*Gota saltitante. Pedro Casquilho.
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O céu bordado d'estrelas....
(Casimiro de Abreu - As Primaveras)
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Abri os olhos quando a primeira notícia do dia me foi a morte de 275 humanos em uma casa noturna. Antes do primo "Bom dia", dei início ao processo de absorção da morte, sempre ao redor como parte "íngreme" e condicionante do estar vivo, ser vivo. A experiência da morte me atrai; exceto pela dor. Às vezes me toca o momento do inexistir, como seria o último suspiro, altíssimo suspiro, ponto final desta longa novela de cavalaria que é a vida; gota inaudível mas de estrago maior. Toda perda é um estrago maior, independente do quilate.
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Nesta semana acompanhei a luta pela vida, igualmente atraente: meu namorado, após séries de estudos sacrificiais, passou em concurso para professor efetivo da instituição na qual sou mestranda. Orgulha-me tamanha dedicação, foco e gosto pelo que se faz. Orgulha-me profundamente vê-lo conquistar a estabilidade desejada, o ponto de equilíbrio para outros voos. Acho bonita a luta pela vida e por vezes sinto que me falta esta gota de "caráter" (como dizem os espanhóis, com suas vozes melódicas...). Minha luta é pequena e modesta. Consiste no acordar e adornar do corpo com filtro solar FPS 35. Ler uma série de textos cuja finalidade ambígua me atormenta (alguns incompreensíveis). Apacientar-me. Esperar o toque do celular, três vezes ao dia. Amar o amor incondicional (às vezes ouvir a chuva caindo). Fingir que busco trabalho. Engolir um sapo aqui, outro acolá. Seguir um pouco: dormir, acordar, passar o filtro (também os não-solares).
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Madame Bovary c'est moi?
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Conversava com Dr. Caramujo esses dias quem me falava sobre minhas estranhezas e também as universais. Confessei-lhe que sou uma pessoa infeliz, porém extremamente alegre - a alegria é o que me salva. "Infeliz" porque não há possibilidade para outra coisa que não isso. É insuportável a dor da perda, da ausência, da não compensação, do destino que se abstém. Há alguns anos já me assumi como tal e garanto não ser fetiche literário, senão o que sou por dentro. É impossível não se encher de tristeza com uma notícia dessas (a dos 245 humanos.....); pode-se beber uma cachaça no almoço e fotografar um beija-flor, mas, cedo ou tarde, o peso da incerteza nos vem arrasador como ressaca. Às vezes quero não ser eu, mas penso que por fim pouca gente sabe o que se é. Pergunto-me, então, se no momento derradeiro haveria a epifânica revelação da nossa identidade ou simplesmente sono. Espero que haja um grande concerto para nós todos, ruidoso concerto com fogos de artifício e prazeres divinais. Isto me consola?
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Não.
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Sou uma romântica-besta-de-humor-infantilizado. Quero casar de branco (apenas no civil), rio de pessoas que tropeçam e de cacofonias estúpidas; acredito na integridade de Sílvio Santos e presto reverência a cachorros de rua - as melhores gentes que conheço.
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(porque toda perda é um estrago maior, independente do quilate).
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Aproveitemos, então, os prazeres carnais - a única porta para a salvação. O desconhecido será sempre lúgubre; deixemos-no para a imaginação, noites sonâmbulas, textos alquímicos e filas de rezadeiras. Se não há respostas que nos confortem, mudemos as perguntas. 
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Para insistentes e infelizes, resta-nos o adivinhar deste céu covarde e saturado.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Coração na mão (Parte II).

Domínio público.
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"Tudo é questão de não se negar nada"
(Sorte ou Azar - Cazuza).
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"Começa o mundo enfim pela ignorância, E tem qualquer dos bens por natureza.
 A firmeza somente na incostância."

( Gregório de Mattos)
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Imagine, querido leitor, uma situação destas: você é gótico numa cidade "roceira" do interior e, sem mais, quase por destino, encontra pessoas com as mesmas perspectivas ideológicas e estéticas que as suas (num passe de mágica). Pessoas que se tornam amigas, apesar do meio não muito propício para tais encontros...(um gótico na zona rural deve ser raro).
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Trata-se de uma ilustração (JURRRAAAAAAA?).
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Sou uma pessoa que, embora muitos me tenham como "simpática", tímida ou besta mesmo, consigo transitar relativamente bem em esferas que vão do A ao Z. Porém, uma coisa engraçada é que atraio sem dar-me conta séries e séries de pessoas estressadas e mal humoradas que se convertem naquelas "mais especiais", digo: alguns amigos (os mais chegados), família (toda família MATERNA - com a qual tenho mais contato), alguns "mestres" (não sou tão idiota em citar nomes....), cachorro, passarinho, mãe, pai, calopsita, namorado e variantes, enfim.
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É muita pretensão imaginar que seria capaz de "transformar" as pessoas a meu redor naquilo que sou: estressada e mal humorada. Concomitantemente, é interessante notar que é isso mesmo....As pessoas que mais amo ou com as quais travo contato intimamente acabam por serem tão chatas quanto eu, beirando o insuportável...
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Mais uma vez, pergunto-vos: Somos capazes em atrair pessoas parecidas conosco ou será  nossa chatice manipuladora de discurso e alma alheia, simbioticamente?
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Conheço um rapaz - uma docilidade de rapaz, quase um Lord - cuja variação de humor é impressionante, chegando ao máximo da escala (a que proponho) de insuportabilidade quando comigo em situações tais. O problema é que, clinicamente falando, a bipolar da história devia ser eu....(explico, um dia).
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Amor ou ódio? (é quase um ódio retorcido, viu...). Não sei! Certo é que desprendo-me  de orgulho e me ponho a refletir: Seria minha energia tão "arrasadora" ou são os chatos que me atraem?
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Falo isso pelo Snoppy: meu pseudo labrador, tão chato, tão chato, que me chega a doer. Este post é absolutamente-exclusivamente sobre ele, meu cão.
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Pode ser, ainda, que um chato reconheça o outro. Excesso de sorriso é sinal de quê? (ou de latidos, no caso do Snoppy).
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Coração na mão, velas ao redor da casa; e mais uma queimadura na certa...
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Que Deus - ou a roda da fortuna - abençoe-nos nestes dias estressantes, já com sinais de poente. Que tudo dê certo - ou errado. Porque o "certo" é uma miragem; talvez errar seja o ato de salvação em algumas circunstâncias. Tal qual o azar que complementa a sorte sem que percebamos....
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Saravá.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Balada da princesa rebelde

Unhas. Domínio público.

Às senhoras mais amadas

(Chega a matriarca)

Veja bem mamãe:
Não me interessam esmaltes,
Não gosto de fazer unhas,
Gosto é de comê-las todas
(O estômago é meu),
Finas, finíssimas, pontiagudas,
Despontadas, quebradas, encravadas.

Não gosto de manicures,
Não gasto dinheiro em salão;
Já são tantas as dores da carne,
Que evito-as sem grande embaraço.

Inconformada, retrucou-me:
- Homem nenhum quer mulher assim -
Desalinhada,
Desatinada, 
Desvairada,
Descaprichada,
Desasseada, 
Destrambelhada, 
Desnorteada, 
Desmaquiada,
Des-mulher,
Des-feminina, 
Des-florificada. 


(Chega a tia)

Veja bem tia:
Não gosto de chapinhas e alisamentos,
Gosto é de cabelo natural
(Como o meu, sem falsa modéstia),
Crespos, encaracolados, aninhados,
armados, bifurcados, triplicados.

Não gosto de cabeleireiros,
Não gasto dinheiro em salão,
Uso shampoo barato (Colorama)
à base de água e sabão.

Ainda assim, dizem as más línguas
Que caminho flutuando pelas ruas,
Que meu pelo brilha como estrela,
Que meu cabelo odoriza coco e espuma.

Inconformada, retrucou-me:
- Homem nenhum quer mulher assim -
Quando acordares tarde será,
Passa uma base nessa unha,
Agenda um horário no One Day Spa,
Compra uma saia dessas da moda,
Verás que linda há de ficar.

(Chega a consultora Mary Kay 
e a paciência se esgota)

Veja bem, moça bonita:
Não tenho dinheiro hoje,
Nem amanhã, tampouco depois.
Volte no início do mês,
Com revista, maquiagem e agrado,
Prometo escolher alguma prenda barata,
Se é que existe.

Inconformada, retrucou-me (em pensamento):
- Mão de vaca!

FIM


sábado, 19 de janeiro de 2013

Poema à colitecística



Imagem: domínio público.
OBS: Não gosto de brincar de poema; é só uma tentativa besta.
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Vômitos viscerais vistosos, 
Alojados ao redor do estoma,
Abaulado por estruturas animais,
Desorganizadas e salientes.
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Anéis herniários reluzentes,
Atrapados colostomicamente,
Desbocados ao redor do homem,
Veloz, inquieto, impaciente.
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Vômitos abcessos lânguidos,
Atados em perfuração cutânea,
Desconfia: o homem de seus excessos,
Dreno de alma não inventaram...
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Anastomoses flácidas simbióticas,
Digestivas mosaicas septicêmicas,
Doença diverticular em cólon E,
Atividade inflamatória recente.
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Ao redor do mundo, duzentos escolhidos 
Destinados à colitecística.
Dreno de alma não inventaram...
Desespero agudo: sim.

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Amplos corredores, máscaras, luvas
Anastomose do ileo  em cólon transverso: ROMPE-SE.
Ascendente cólon ceco contaminado
Descofia: o médico relaparatomiza
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Antibióticoterapia,
Dieta renal,
Viagem adiada,
Amém.
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Astúcia no viver é vontade que não se rompe.
(Com ou sem dreno de alma).

Poção de Ânima

*Bola mágica. Foto de Joao Sines.
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Era uma vez uma menina: escorpiana, ascendente em Áries, Lua em não-sei-quê. Dotada de  sensibilidade incomum para inutilidades, nossa menina orientava-se à medida das pressões que lhe atribuíam: sua hora, a última, funcionava para que suas atividades se saíssem bem, por ter trancafiada em parede cerebral a parábola dos irresponsáveis: – Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
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Estudava, trabalhada em dois ou três empregos (um deles sempre como voluntária) e gostava de ler; às vezes namorava, às vezes não; às vezes dançava, às vezes não. Mas estava sempre para os amigos e  família - apesar dos atritos óbvios, pois, como dito acima, ela era de escorpião e , em consequência, tinha um temperamento dificílimo, ainda que a cara não revele.
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Muito tempo se passou e nossa menina alcançou certa posição desejada por outrem; não o que ela desejava de fato; apesar disso, corria o risco do reconhecimento por ser boa no que fazia, além da lábia que lhe era peculiar. Gostava tanto de música que trazia sempre um MPqualquercoisa gravado na alma, com trilhas sonoras para qualquer tipo de ocasião. Também era viciada em suco de maracujá e bolo de chocolate.
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Teimosa, desafiou hierarquias neuropsiquiátricas a fim de manter sua rotina de "bamba": noites sem dormir, uma cervejinha aqui-acolá; uma cachaça barata para o despertar dionisíaco. 
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Nunca se conformou com às injustiças alheias, porque sentia-se traumaticamente injustiçada pela vida. Militou em séries de questões e foi feliz assim, sentido-se integrada à teia universal.
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Gostava de seriados policiais e tinha mania em pesquisar casos de homicídios culposos na internet. Sofria com os psicopatas. Pena, talvez. Também gostava de sol (sítio, não praia: nunca soube nadar). Estudava línguas, porque achava impressionante a capacidade de se chegar ao outro por meio do verbo. Titubeava no Inglês e no Espanhol, mas sempre se fazia compreender (é porque falava com as mãos, nossa menina cheia de dons).
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Hoje de manhã, deu-se conta de não ser mais a mesma. 
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A curiosidade que a acompanhou por mais de vinte anos parece esquecida em certo lugar; não lê, não pesquisa, não sente prazer nestas coisas de sua profissão. Não sai, não vê amigos; está sempre com a família - não por obrigação - mas por necessidade. Não quer estar sozinha à mercê de suas frustrações, teme ouvir a si mesma e descobrir que se perdeu por aí, que está entristecendo. Não faz objetivos; os antigos, já não realiza; sofre de frustração voluntária. Teve direito à escolha e hoje, com quase trinta, acha que escolheu mal. Escolheu tudo ao contrário. Foi escolhida (a última, como num jogo escolar).
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Faltam três anos para os trinta, bobagem que a oferece pouco de alento. Espera que até lá um milagre aconteça e ela descubra, por fim, o para que veio e está.
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Antes disso, uma dissertação a ser escrita, alguns problemas familiares, um emprego a ser encontrado, um namoro à distância.
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Dispus-me a buscar em terras longínquas uma poção de Ânima para esta menina - tão desvairada - já que não se pode encontrar no Mercado Livre (ela tentou).
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Está cansada, a menina, e cheia de vozes mentais que insistem: - Termine o que tem pra ser terminado. Depois, vire à esquerda.
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Mas o peso da idade dói. Não é mais tão menina nossa menina (apesar de atrair, por razão extraordinária, a amizade de criancinhas, que mal desconfiam o peso dos anos sobre as costas dela. Coisa de energia).
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Quero ajudá-la, porque muito lhe devo. Continuarei buscando tal poção, para que desperte deste sono enclausurado e definhador; para que exploda, arda, queime. 
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É preciso queimar, sempre. O inferior a isso é uma vida titubeada para qual não nasceu (a menina).
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Ela sabe. E o peso do conhecimento dói. Incita o des-arder, aumentando a sonolência e a dúvida - o mal por excelência dos seres vivos.
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Você duvida?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Quid est Veritas?

*Foto de Maria Flores. O peso do mundo às costas.
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Não sou espírita, embora comungue da filosofia kardecista em certos pontos. Tampouco umbandista ou adepta ao candomblé, apesar de que são estas as expressões mais interessantes que já presenciei. Falta-me a Sinagoga e a Mesquita. Quanto à Igreja Católica, nasci nesse meio e durante a juventude inseri-me em diversos projetos cujo eixo - Teologia Juvenil e política - ampliaram meus horizontes (Patoral da Juventude). A Sociedade São Vicente de Paulo fez-me desconstruir um mundo cor-de-rosa e chocar-me com uma realidade que, apesar de minha,  fez-se névoa  durante  anos. Redescobri minhas origens e parti para uma militância de mim para o outro (militância solitária, pois meu foco sempre esteve além...). A Comunidade Missionária de Vilarregia ajudou-me a compreender as minhas angústias....Também houve a CASFA, onde compreendi um desejo: trabalhar com/para jovens infratores. O IPJ e os trabalhos pastorais dos amigos BH-enses ensinaram-me a coisa na prática: acarinhar um jovem homicida tal qual filho. A base de tudo foi o Ballet clássico, o qual desorientou-me profundamente, estragando-me.... Fez-me assim a vida: metade Gabriela, metade Poliana. Antes houvesse aprendido judô ou qualquer arte marcial (Boxe?). 
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Nunca mais assisti a uma missa (por opção); mas gosto de meditar em igrejas e capelas vazias. O que me encanta na Igreja Católica são os rituais, o decoro, a arte. Meus olhos se fizeram distantes da prática teológica, mas o coração prendeu-se à estética....(não acaso, pesquiso Gil Vicente e o século XVI).
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Fim da introdução.
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Não me faço piedade. Quando olham a meu pai - cansado, magro, "sofrendo" - irrita-me a falta de sensibilidade alheia. Talvez, infelicidade compartilhada. Meu pai teve a vida mais afortunada que já conheci. O desafio da luta só enriquece seu espírito. Meu pai não é fraco, tampouco digno de piedade. Odeio vizinhos curiosos, ou pessoas que olham-no como se fosse um coitado. Coitados são aqueles que não tiveram sorte no viver (meu pai soube e sabe viver). Sinto pena (apenas) dos que passam fome, não tiveram oportunidades, estão reclusos num mundo limitado, como o da caverna de Platão. Meu pai não: casou-se, teve uma filha, viajou, conheceu o Rio, tem amigos sinceros, irmãos que, de tanto amor,  estressam-me (coisas a serem relevadas pelo bem que o fazem). Minha mãe é a mulher mais forte do mundo; a enfermeira. Eu, pseudo-médica, leio artigos relacionados todos os dias e dou-me conta do prazer sentido em aprender as diferenças entre divertículo e diverticuloses (embora prefira às doenças sanguíneas). 
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Voltando. Não sou espírita. Não pretendo vincular-me a grupo algum neste momento. Mas sinto dentro de mim uma absurda capacidade de empatia que me chega a ser patológica: Empatia patológica.
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Vejo um homem baleado e sofro por sua angústia  meses a fio, como se fosse (eu) a vítima. Chego a sentir as mesmas dores, um processo alucinógeno sem uso de drogas. É tão pretensioso o que vou dizer....Mas, como ninguém lê essa porcaria de Blog, a confissão me liberta: acho que sou capaz de sentir as dores e angústias alheias. Não por altruísmo; não! Pertenço ao grupo dos egoístas; ultimamente, só minha carreia me preocupa (no plano consciente). 
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Quando um amigo ("o especial") finalizava o processo de quimioterapias e radio, cheguei a vomitar muitas vezes, estando ambos separados por fronteiras estaduais. O irmão, capitei por sonho e fui a última a vê-lo com vida. Repito diariamente estas confissões a fim de encontrar um pouco de luz, quiçá resposta. 
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     Quid est Veritas?
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Há dias sem dormir; hoje, por exemplo, não fui às aulas do Mestrado porque - devido a insônia - só adormeci por volta das cinco da manhã e recusei-me acordar às sete. (cem anos de perdão). À tarde, uma ansiedade insuportável, acrescida de todo infortúnio intestinal consequente. Desisti da segunda aula também. Não consigo ler, concentrar-me; giro em torno das mesmas questões, sentido dores que não são minhas, porém escolhidas (eu escolho, elas me escolhem, não entendo muito bem).
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Penso em meu namorado. Antes de qualquer coisa, de que nosso relacionamento dê certo ou não, quero sua felicidade integral, a que neste momento está vinculada a um trabalho efetivo, estabilidade, tranquilidade. Isso me preocupa de tal forma como se fosse eu a "concurseira". Desejo sua realização profissional porque sei: a esfera acadêmica é o seu lugar. Preocupa-me o infortúnio de não ser agora a resolução da vida. Na falta de ajuda concreta, passo os dias em casa "matutando" e absorvendo a ansiedade que julgo ser a dele.
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Um mês e algumas perdas. Amigos que partiram para o lado de lá - precocemente: um tio, uma amiga, um colega de 25 anos. Quando durmo, só consigo pensar na dor desses passantes e de suas famílias. Absorvo-as todas e quiçá por falta de labor (ou graça de vida-particular) faço de tais dores (tão) pessoais, como se fosse mãe de trigêmeos.
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Penso no meu tio, no meu pai, na minha mãe. Na minha atual incapacidade financeira , não permitindo ajudá-los como devia. É como se houvesse dentro de mim uma melancia no estômago, um mundo nas costas e um espelho na alma. Tudo me toca, tudo me dói. Sinto-me cada vez mais cansada: falta-me energia vital.
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(Cabe o parêntese. Uma de minhas ex aluninhas, a mais brilhante, disse-me certa vez  ao observar minhas últimas doenças de pele: Profi, sua energia vital está baixa....)
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É como se tivesse uma capacidade estranha em conectar-me com o mundo e suas desgraças. Não preciso procurá-las. Todas me vêm e não por desejo: é isso o que nomeio de empatia patológica.
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ou simplesmente....medo da vida.
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Então nos chegam serafins enviados por Deus com seus dizeres remendados de fragmentos bíblicos (mal interpretados, porém sentidos com alma, o que já é alguma coisa....). "Para Deus nada é impossível....porque ele é o caminho, a verdade  e a vida". É quando me vem a falta de paciência e excesso de retórica e preciosismo. Vontade de listar as inúmeras coisas não controladas por Deus, senão pelo livre-arbítrio humano ou fatalidade casual. Intimamente, no silêncio obscuro do eu, pergunto-vos:
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       Quid est Veritas?
O mundo e suas virtuosas-verdades-variantes.

Aniversários

* O Aniversário. Marc Chagall, 1915. 
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I

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje, 
assim calmo, assim triste, assim magro, 
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força, 
tão paradas e frias e mortas; 
eu não tinha este coração que nem se mostra. 
Eu não dei por esta mudança, 
tão simples, tão certa, tão fácil: 
Em que espelho ficou perdida a minha face?

(Cecília Meireles)

II

Mater dolorosa

(...) Uma vez fizemos piqueninque,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for só isso o céu,
está perfeito

(Adélia Prado).

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III

Dulzura

Madrecita mía, 
madrecita tierna, 
déjame decirte 
dulzuras extremas. 

Es tuyo mi cuerpo 
que juntaste en ramo; 
deja revolverlo 
sobre tu regazo. 

Juega tú a ser hoja 
y yo a ser rocío: 
y en tus brazos locos 
tenme suspendido. 

Madrecita mía, 
todito mi mundo, 
déjame decirte 
los cariños sumos.

(Gabriela Mistral)

sábado, 12 de janeiro de 2013

Cigarro de Esmeralda

*Laguna Esmeralda. Hugo Reis.
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É verdade, sem mentira, muito verdadeiro
O que está embaixo é como o que está no alto
E o que está no alto é como o que está em baixo
para produzir os milagres de uma só coisa.
E como todas as coisas têm sido e são vindas de um,
Assim todas as coisas nasceram dessa coisa única, por adaptação.
O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento a carregou em seu ventre e a terra é sua nutriz.
O pai de toda Telema está por aqui; sua força está inteira se ela é convertida em terra.
Tu separarás a terra do fogo, o sutil do espesso, docemente como grande desvelo.
Ele se eleva da Terra ao  Céu e desce novamente sobre a  Terra e recebe a força das coisas superiores e inferiores.
Por este meio, tu terás toda glória do mundo e toda escuridão se afastará de ti.
É a Força forte de toda força,
Porque ela vencerá toda coisa sutil e penetrará toda coisa sólida.
Assim foi criado o Universo.
Dist serão e saíram inúmeras adaptações, das quais o meio está aqui.
Eis porque fui chamado  Hermes Trimegistro,
Tendo as três partes da filosofia do mundo.
O que disse da cooperação do Sol está cumprido e terminado
(Hermes Trimegistro. Tábua de Esmeralda).
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Descobri esse texto alquímico aos doze ou treze anos. A minha interpretação é a de que estamos conectados a três mundos (....daí a coisa cristã da trindade) físico, espiritual e humano; e que todos eles se ligam por uma só "força". Mas todos são passíveis de imitação/adaptação. Quem é capaz de acionar estas três esferas dentro de si tem o conhecimento universal. (Olha,Juro que não fumei nada alucinógeno...). Gosto muito  desse texto e, desde que ele me descobriu, lemos-nos minimamente três vezes ao ano, em séries de sete.  Bom dia! 

Todo cambia...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Se não pode com eles, junte-se a eles.

*Quando toca o telefone. Foto de AnaApple

....a eles.
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Não há máxima melhor na sabedoria popular. Adaptada a certos contextos, obviamente: contextos como o da falta de escolha e excesso de medo. O medo é boa munição para o atinar-se, juntar-se feito cabrito ao rebanho do medo, atar-se mãos e pés, que de tão calejados reparam-se com o predador, que sabiamente, perdoa.
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Aquele senhor - que tão bem conhecemos - apresenta hoje 38% de funcionamento renal, além de uma "coleção" próxima à colostomia. Precisa - urgência,urgency,urgencia,aciliyet,דחיפות - de um gastroenterologista cirurgião. Como dizia certo ex namorado Dinheiro na mão, calcinha no chão (esta é a segunda melhor máxima da sabedoria marginal-popular-juvenil). Eu creio, mas eles sabem o que fazem (eu ainda respiro desatino, quando o medo é maior que 38% não há insuficiência monetária que nos pare).
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Medo é coisa de gente sem fé. Quem traz consigo a força das coisas superiores e inferiores segue sem olhar pra trás. 
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Eu ando da frente pra trás e trago comigo uma folhinha de arruda enfiada numa Bíblia junto de uma estrela de Davi colada num orixá preto. Nunca se sabe o nome do-santo-plantonista quando surge a necessidade.
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A necessidade nos surgiu hoje de manhã e uma chuvinha fina dessas que te benzem. Mesmo assim, ela crema/carne/cronifica-se - a necessidade.
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Do mal será queimada a semente.
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- Eu ligo pra ele. Me passa o número.
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Novamente.
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Engolir orgulho é pior que choro engolido. Pra isso, a terceira melhor máxima: Mais vale um pássaro na mão que dois voando.
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Contagem Regressiva: fora de área.
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 quero ter olhos pra ver?

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

[Cria]tura[dor]

* Voo de Balão. Foto de António Guerreiro.
.....
...
Dedicado à família Schorr e à querida Shanti.


"A morte não é nada. 
Eu somente passei 
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês, 
eu continuarei sendo.

Me dêem o nome 
que vocês sempre me deram, 
falem comigo 
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo 
no mundo das criaturas, 
eu estou vivendo 
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene 
ou triste, continuem a rir 
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi, 
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo 
o que ela sempre significou, 
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora 
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora 
de suas vistas?

Eu não estou longe, 
apenas estou 
do outro lado do Caminho...

Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi." 
(Santo Agostinho)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

EXAME PSICOTÉCNICO (Parte I)

(I - Auguste Herbin & II Anatol Knotek )

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Amor bilingue



"Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo de minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer e tudo recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.
Me miras, de cerca me miras, cada vez más de cerca y entonces jugamos al cíclope, nos miramos cada vez más de cerca y nuestros ojos se agrandan, se acercan entre sí, se superponen y los cíclopes se miran, respirando confundidos, las bocas se encuentran y luchan tibiamente, mordiéndose con los labios, apoyando apenas la lengua en los dientes, jugando en sus recintos donde un aire pesado va y viene con un perfume viejo y un silencio. Entonces mis manos buscan hundirse en tu pelo, acariciar lentamente la profundidad de tu pelo mientras nos besamos como si tuviéramos la boCa llena de Flores o de Peces, de movimientos vivos, de fragancia oscura. Y si nos mordemos el dolor es dulce, y si nos ahogamos en un breve y terrible absorber simultáneo del aliento, esa instantánea muerte es bella. Y hay una sola saliva y un solo sabor a fruta madura, y yo te siento temblar contra mi como una luna en el agua."
(CORTÁZAR, Julio. Rayuela/O Jogo de Amarelinha, 1964, p.7)
[Na cama (1893) y O Beijo (1982), ambas de Henri de Toulouse-Lautrec].


Céu rezado

*Baixo Mondego - Milagres. Foto de Bruno Raposo.
..
...A chama da vela que reza
Direto com santo conversa

Ele te ajuda te escuta

Num canto colada no chão mas sombras mexem

Pedidos e preces viram cera quente

Pedidos e preces viram cera quente

(Reza Vela - Rappa)


Mire.
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Voltar-se contra sistemas nem sempre é fácil. Vejam só o meu caso, querido leitor: brasileira que odeia calor e tem alergia a sol. Gosto de sol, mas odeio as consequências dos dias absurdamente ensolarados e quentes: "crostas" de feridas nas mãos e no colo. Que fazer? Mudar-me para a Europa? Ideia que não me é ruim, apesar de amar a aspereza e o brilho do meu país. Antes de mudanças continentais, mais sensato é gastar uma dinheirama com protetor solar e remédios à base de corticoides: óculos escuros e sombrinha cor-de-rosa, clássica por assim ser. Há algumas semanas, fui chamada de "Sinhá Moça" - sombrinha e eu - pelo meu pai. Ao sair com minha prima-pré adolescente, a vergonha instaurou-se naquele cabelo tão vermelho (cor de sangue...): "Mas o sol já se foi"; "eu sei, mas são os raios Ultra violetas...."

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O essencial é invisível aos olhos.

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O tema é bastante pessoal, desagradável a certos leitores, mas eis o expurgar que tenho, limitada página bloguística: falarei sobre a doença do meu pai (finalmente).

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A princípio, pequenos divertículos que deviam ser retirados cirurgicamente. Um desses tais, extremamente raro (depois descobrimos que só 200 pessoas no mundo têm algo desses, adquiridos ainda no ventre materno). Meu pai fora o escolhido por Deus. Fez a remoção do então "tumor", que de maligno nada tinha, porém poderia, com muito azar, converter-se em  Linfoma. Cirurgia feita com sucesso. Até o sétimo dia. Até.
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Mire...
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Acompanhei todo o processo, pedindo adiantamento de férias no mestrado e trabalho. Passei dias em Contagem (não citarei, ainda, o nome do hospital por razões óbvias). Meu pai estava bem, quando deu-se um inchaço abdominal estranho, cuja suspeita da junta médica (dois médicos na verdade) era a de que fosse a bexiga. O sétimo dia traria consigo o risco de ruptura da anastomose ("as extremidades" ligadas do intestino, já que parte dele foi retirado). Isso foi dito pela médica que, insistindo na espera, decidiu avaliá-lo apenas no dia seguinte. 
Chegou o dia seguinte. Nada de médica. Abdome ainda mais inchado. Tratamento à base de morfina para aliviar a dor; dieta liberada (comprei manga para o meu pai). Nada de médica. Nada de nada de nada de nada (o hospital não tinha sequer um laxante).
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Mire, eis que no dia seguinte, converso com a médica e lhe dou merecida bronca, cercada de eufemismos e cuidados. Meu pai é submetido a dois exames, se não me engano tomografias. Mas o "contraste" (líquido que demarca a parede intestinal) fixou-se em algum lugar de seu corpo, não sendo digerido. Sinal ruim. Aguardaram pouco mais, segunda tomografia: nada de contraste. Neste momento, mais que qualquer outra coisa, irritou-me o discurso médico, carregado de diminutivos e roseamentos, como se fosse incapaz de compreender o que se passava: - Calma menina; há uma infecçãozinha, mas é normal. Agora você deve é cuidar do seu pai, dá-lo tranquilidade. Amanhã, se preciso, faremos outro procedimento cirúrgico
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Neste céu rezado que é o da minha família e os terços que nele habitam, calma não vem de mim.  Calma vem do tio, da tia, do primo,da prima, da esposa, do amigo e até do "genro": calma não me serve, porque sou de escorpião e minha cor preferida só pode ser vermelho, vermelho sangue. 
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Formei-me no colegial em 2003 e enquanto todos já sabiam quais vestibulares prestar (ou cursinhos a serem feitos), eu passava meus dias entre o Ballet e os trabalhos voluntários (que me formaram como sujeito e coração). No fundo, eu já sabia o que queria, a Medicina. Pouca gente sabe, quase ninguém, mas meu primeiro vestibular foi o de Medicina da USP. Sempre tive dificuldade em química-física-biologia e matemática, destacando-me nas humanas (Letras, Línguas, História e Filosofia). Mas queria ser médica e prestei  Fuvest.  Vexatório, confesso: mas não havia sequer estudado, fiz por fazer. No ano seguinte, mudaríamos-nos para Minas Gerais, o (então) pesadelo que nunca quis. Logo, já ciente de tais percalços, decidi prestar o sonho, antes de engajar-me à realidade e fazer dinheiro com qualquer coisa. 
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Nunca soube o que me levou a tal gosto: o de gente hospitalizada e sofrimento humano. Talvez um irmão morto precocemente por doença cardíaca; um "pseudo" namorado por leucemia linfóide aguda; ou, simplesmente, vontade. Acompanhei tanta gente em hospitais, já fui inclusive internada e amparada. O sonho virou inibição latente que , por vezes, mostra-se em meus sintomas, como assinaturas de revistas médicas e coleção de artigos médicos sobre doenças sanguíneas....Quase optei pela vida religiosa, possivelmente pela esperança em trabalhar num hospital. 
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Irrita-me o discurso médico, porque - modéstia à parte - eu busco o entendimento das coisas. Pois bem, no dia 11 de outubro de 2012, rompeu-se a anastomose cirúrgica e eu estava ali, no quarto, dando-me conta do excremento de fezes ao redor do umbigo de meu pai (que já respirava com dificuldade sem saber por que). Médica? Nada de nada de nada de nada. Uma enfermeira, tão leiga quanto você leitor, pôs espécie de curativo sobre o que exigia remoção cirúrgica urgente. Quatro horas depois, médica ressurge das cinzas levando meu pai ao centro cirúrgico, drenando os elementos fecais. Em seguida, UTI, pesadelo, céu rezado.
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Mire!
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Dez dias na UTI entre vida e morte. Inicialmente, taquicardias e febre, sintomas que cessaram e deram lugar à insuficiência renal, delirium...(confusão mental) provocado - na minha opinião - pela ureia retida. Diálise. Dieta. Cuidado...agora sim, cuidado! Neste meio tempo, meu tio Dário nos veio visitar, entrando comigo - de mãos dadas- na UTI. Conversou com meu pai (que estava inconsciente), coisas de irmãos. Saímos também de mãos dadas, quando me disse: "Agora posso ir embora em paz; seu pai vai se recuperar".
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Esta foi a última vez em que o vi. Meu tio faleceu há alguns dias, devido a ruptura de um aneurisma cerebral. Cinquenta e sete anos. Três filhas. Um neto. Uma esposa e o coração maior que o próprio corpo.
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Saindo da UTI, ficou alguns dias na enfermaria e logo conseguiu alta (...na minha opinião, por falta de leito. Como liberariam alguém cuja ureia estivesse tão alta?).
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Quinze dias depois, é novamente internado por insuficiência renal: potássio e ureia demasiada alta. A infecção generalizada, provocada pela bactéria Acinetobacter baumanii, provavelmente adquirida na segunda cirurgia (não disse acima, então explico: o quadro de meu pai fora grave devido a uma infecção generalizada, atingindo rim e vias respiratórias, causados por tal agente bacteriano. Nunca me explicaram se tal bactéria "surgiu" durante a drenagem das fezes, a colocação do tubo , ou em decorrência de outras bactérias intestinais. O fato é que a  A. baumanni é considerada uma superbactéria e periférica, de modo que a luta pela vida era a luta contra tal corpo estranho).
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Visitei-o todos os finais de semana (tive que retornar ao trabalho e ao mestrado - embora este último confesso ter deixado em décimo sétimo plano, sem concentração necessária para leitura e escrita alguma). Conheci uma série de pessoas e seus céus, em condições melhores  ou piores. Aprendi muito. Aprendi, por exemplo, que o termo "estável" na medicina não passa de eufemismo, é como: "ele está fodido, mas ainda respira".
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Um mês e meio depois, voltam meus pais a Viçosa. Nosso hospital querido da rede pública de saúde do Estado de Minas Gerais marca o retorno do paciente Raimundo José apenas para o dia 25 de janeiro. Absurdamente angustiada, fomos a outro gastroenterologista particular, o qual se negou a assumir o caso tendo em vista uma conduta ética, porém nos pediu exames de praxe, nos quais observamos a estabilidade de meu pai (isto é, fodido, mas vivo). Anemia, ureia e potássio alto, falta de apetite. Encaminhou-no para um neufrologista, cujos exames já feitos serão avaliados nesta sexta.
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Meu desafio pessoal é o de conseguir outro médico para meu pai. Minhas opções são: Muriaé (uma tia já está cuidando disso); São Paulo (meu pai nunca aceitaria ir a São Paulo devido ao gasto que teríamos; entretanto, possuo contatos e amigos lá, além de casa); Juiz de Fora (o médico com quem o cunhado de meu pai fez contato também se negou a assumir o caso); Belo Horizonte (marquei uma consulta com um gastro renomado da UFMG, consulta que me custará os olhos da cara - R$500,00 - sendo o tratamento particular; Viçosa (prostrar-me ante o médico que já conhecemos e, com olhos de choro e sofreguidão, implorar que assuma o caso...).
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As próximas duas semanas serão decisivas. Se nada conseguir, ele volta para Contagem no dia dezoito de janeiro; ele, toda a minha família e nossos céus rezados, adornados por terços e santos. Antes disso, contudo, convenço-o a vender algum imóvel ou a fazer um empréstimo; mas nossos pés, nossos pés lá não tocarão, a depender das negligencias que presenciei (ou quiçá inventei; ver um pai à beira da morte é o suficiente para romper a fronteira entre razão, sanidade e fé).
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Meus pais saíram há pouco, para mais um exame. Temos um vizinho que, além de lindo senhor, é o anjo da guarda de meu pai: assistem a filmes juntos, proseiam, cuidam um do outro. É seu atual motorista. Atual porque decidi, ainda amanhã, matricular-me numa auto escola.
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Eu estou bem, obrigada! Namorado viajando.... Passo os dias em casa, tentando estudar, tentando ler, tentando escrever, tentando não me entristecer (e fazendo nada). Meus priminhos estiveram aqui por esses dias; enchi-os de presentes e mimos, porque amo amá-los. Já se foram todos (a mais velha ainda não veio, não sei se virá) e decidi escrever, para desangustiarme. Às vezes recebo visita de amigas; às vezes saio....mas a incerteza sempre está comigo. Não durmo, e quando o faço tenho algum pesadelo estranho. Há dois dias, sonhei que me perdia em minha própria casa, como num labirinto borgeano. Hoje, uma trombose horrível.
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Mire: Há quase um ano, estive em Buenos Aires - a viagem perfeita. Hoje, a roda da fortuna nos pesa bocado mais, esmagando-nos como mosca. Como fezes. Tudo por conta de um sistema público de saúde que - embora brilhante no que diz respeito às enfermidades "tops", não tem leito suficiente numa enfermaria ou médicos de plantão para quando uma urgência acontecer. Sobrevive-se ao câncer; morre-se de infecção hospitalar.
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Amanhã chegarão os livros de Química e Biologia que comprei.
Mire.