sexta-feira, 29 de maio de 2015

Resposta a leitor antigo


Pensamento do dia: Então, olhando assim, eu pensei no "O Guardador de rebanhos" do Fernando Pessoa. Na realidade foi só isto que consegui pensar por que tentei olhar a paisagem, mas seu pensar está denso na foto. Esta é para você:

V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
.....
Obrigada pelo comentário-poema só visto agora.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Tempestade

*google.
......


Sempre admirei pessoas capazes de grandes mudanças, conversões religiosas, conquistas impossíveis. Desconheço o mecanismo que as movam, mas desconfio de que seja uma mistura de paixão, raiva e necessidade,não exatamente nessa ordem,

Não tive uma vida de muitas conquistas, a não ser aos quatorze e quinze anos, ao decidir que conheceria a banda Hanson pessoalmente; não só isso, os reencontraria para tirar uma foto que não deu tempo no primeiro encontro. Acho que naquele momento, paixão, raiva e necessidade (ainda que inventada) fizeram-se valer e consegui o que muitos, na época, invejaram. Hoje talvez seja fácil, ainda tenho vontade de revê-los, por volta do fim da vida, com a chegada da velhice, para contar-lhes sobre minha admiração. Ultimamente há mudanças mais urgentes a serem feitas.

De maneira ou outa, o fato é que ninguém muda sem necessidade. Ninguém acorda n'um domingo de manhã propondo-se a ser uma pessoa melhor, trabalhar em uma ONG, adotar um filho, fazer academia, entrar com um processo contra a empresa que o demitiu sem justa causa....mudar alguns defeitos. As pessoas, pelo menos as que conheci, mudam por necessidade: para fugirem da solidão, do medo, do abandono, da dor; para serem felizes e com isso tornar as pessoas ao redor - companheiro(a), filhos, vizinhos, amigos, humanidade.... - igualmente felizes. As pessoas são acomodadas e permaneceríamos ainda nas trevas se a necessidade de esquentarmo-nos não houvesse feito com que, instintivamente, o homem criasse o fogo. O mesmo se dá com essas modelos que após posarem para revistas masculinas tornam-se evangélicas ou qualquer outra ramificação. Não consigo analisar o porquê....(não acho vergonhoso posar nua) mas há alguma razão, a pretensa ideia de haver chegado ao fundo do poço. Cada ser humano tem sua ideia única sobre o que vem a ser o fundo do poço.

Não só admiro como também creio nessas conversões religiosas, nesse estalar de dedos que faz com que o sujeito decida tomar a estrada contrária, evitando assim uma morte precoce, morte de um amor, morte de uma amizade, morte de um sonho, ou de si mesmo. Não creio, todavia, que essas coisas se deem de repente, acho que é um processo longo e gradativo, mas possível, pensando no tripé acima (paixão, raiva e necessidade).

Sou escorpiana e como tal sempre tive de berço paixão e raiva. Em minha última apresentação de Ballet, em um festival, apresentando "o desafio de Kitri", sentia uma raiva imensa dentro de mim. Raiva por saber que possivelmente seria a última vez que pisaria num palco. Prestes a me mudar para o interior de Minas, via naquele momento o naufrágio da minha carreira de bailarina. Bem, naquela altura da vida já não queria dançar profissionalmente, mas queria ainda curtir a leveza que a juventude me proporcionava. Da coxia, três batidinhas no chão e um sinal da cruz, como sempre. Ao entrar naquele palco, já não era eu, tampouco Kitri, era um ser intermediário movido por uma paixão, uma saudade, uma vontade de permanecer eternamente ali. Fiz um "balance" perfeito; a diagonal com pirouettes simples foi perfeita, finalizando-a com uma tripla. Aplaudiram-me de pé.

A menina da coxia me abraçou (uma desconhecida), dando-me os parabéns.

Por fim, ganhei o terceiro lugar junto de outra colega. Eu estava gorda (risos). Mal tive o prazer de subir ao palco e pegar o meu troféu, visto que minha colega, e amiga, muito mais "aparecida", mal ouviu o próprio nome e saiu a correr, pegando o dela e o meu - troféu. A verdade é que o joguei fora, nunca mais o vi, mas naqueles segundos de variação de repertório, sofri novamente o transe das grandes conversões.

Poucas vezes vivi o mesmo. Sou do tipo que me deixo abater pelo ódio, pela tristeza, pela injustiça, pelo medo de perder. Já vi tantas e tantas pessoas morrendo, tantos jovens....que de alguma forma isso me bloqueia, todas as vezes que tento mudar algum comportamento viciado.

Estou passando por um momento de muita dor. Dentro de mim, sinto a ressaca do mar, ressaca de pensamentos, vontade de me segurar em algum apoio que não vem, que não enxergo, que não existe. Sou o tipo de pessoa que venceria uma leucemia linfoide aguda, mas que não consegue vencer os seus sentimentos.

Queria outra vida.

Mas, na impossibilidade de tê-la, decidi que vou mudar algumas coisas na que já possuo, coisas práticas e coisas mais complexas, dessas que só mudamos por amor ou pela ausência dele.

Um brinde ao que virá! 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

"NO HAY MAL QUE POR BIEN NO VENGA..."(reflexões sobre a humanidade)




fonte: google.

Desde os primórdios da minha humanidade mamãe já dizia "calma, o que é seu tá guardado". Hoje, com um pouco mais de experiência, imagino que seja lá o que há de ser meu deve estar, de facto, muito, mas muito bem guardado.......

Para os desinformados de plantão, o facebook é com toda legitimidade humana não só um local para memes e flertes, senão também um muro das lamentações...Pois bem! hoje quero fazer uso do meu direito humano de me lamentar! Há quem o faça de barriga cheia, semi cheia, semi vazia, vazia, super-vazia...Não sei em que categoria me classifico mas isso tampouco vem ao caso: quero me lamentar e, caro leitor, se não queres um pouco de lamento, passe esta página.

Deu-se que hoje foi o dia das designações estaduais da cidade de Viçosa. Há quase um ano trabalhei na mesma escola, cujo nome não vem ao caso, mas enfim....trabalhei. Muitas vezes quis desistir, muitas vezes fui infeliz, mas muitas vezes fui bastante feliz. Sou professora e apesar do amor, não recebo em "amor", ou seja, recebo em dinheiro, pouco, mas dinheiro, portanto preciso trabalhar.

Aconteceu que cheguei no local onde ocorriam as designações, com toda a documentação necessária, previamente organizada. Esperei que fossem atendidos a princípio meus colegas concursados...muitos deles que não conseguiram trabalhos almejados por falta de documentação ou "lapsos" na documentação. Eis que chega o momento do meu atendimento, como vinculada, por haver trabalhado x tempo em um colégio da cidade, lecionando para o ensino fundamental.

Conforme minha experiência como tutora (alunos de graduação), cursos pré vestibulares (alunos mais velhos), tinha eu o objetivo de conseguir aulas para o ensino médio, experiência essa que me falta no currículo e que, apesar da remuneração e dos problemas que todos sabemos, tenho vontade de exercer: trabalhar com alunos de ensino médio. Ao saber que por ter esse "vinculo" com a escola em questão conseguiria tais aulas, um céu se abriu no meu imaginário "Que legal, conseguirei o trabalho, terei experiência, pagarei minhas dividas, serei feliz no amor, comprarei um carro, ficarei riiiccaaaaa" (mais ou menos).

O problema foi que apesar de toda a minha documentação, corretíssima, havendo o acréscimo de ter concluído um mestrado......em meu atestado médico, escrito por um "médico da família", não constava a palavra "PROFESSORA". Ora, dizia assim o atestado: "fulana de tal [...] apta para executar plenamente suas atividades laborativas". Eu, que sou besta, penso que a palavra professora seria desnecessária, haja vista que o dado atestado comprovava que tenho a consciência física e mental para desenvolver bem o meu trabalho.....Pois não: apenas pela falta da palavra PROFESSORA, me foi negada a oportunidade de trabalho que então esperava.

Lendo a resolução em questão, diz-se dessa forma a exigência: "– comprovante de exame pré-admissional atestando a aptidão para a função pleiteada, observadas as normas estabelecidas pela Secretaria de Estado de Planejamento....". Li a resolução anteriormente e não me dei conta de que a palavra PROFESSORA fizesse tamanha diferença!

Digamos que esteja errada, porque errar é próprio do humano. Pedi a meus superiores que me dessem o prazo de meia hora para "consertar" o atestado, visto que poderia facilmente entrar em contato com meu médico, visto que necessito de trabalho, visto que eu "teoricamente" tinha uma preferência. 
Não pude.
Pedi, então, que pudesse entregar outro atestado na segunda-feira, que pudesse ir a Ponte Nova, se fosse o caso, resolver isso.....
Não pude.


Certo. Não fui a primeira nem a última a passar por isso. E as regras valem para todos, de modo que não estou aqui a culpar uma pessoa específica.
Mas estou aqui a falar de HUMANIDADE. Eu, que convivo diariamente com colegas professores de universidades e etc, nunca vi um sistema de distribuição de trabalho tão rígido e desumano. Ainda que esteja errada (talvez outros colegas professores, pacientes para lerem esse post afirmem que a palavra professora faria total diferença....) - ainda assim, trata-se de um sistema desumano, onde um quer "furar" o olho do outro....e não estamos falando de qualquer profissão, ora....estamos falado de professores de Língua Portuguesa, de educadores da área de Humanas.


A partir do momento que um pedaço de papel, uma burocracia, é mais importante que a palavra, a doação, o trabalho físico e mental de um ser humano, de um sujeito, de um formador de pessoas.....o que há de se esperar em nossas escolas?
Estou triste, chateada, inconformada.......errei em não ter pedido ao meu médico que escrevesse "apta para a carreira de professora", mas pensava que meu diploma de graduação, mestre e experiência de alguns poucos anos desse conta disso, subtendesse-se: afinal....somos profissionais das Letras.


Outro dia, após um problema pessoal, fui a um boteco e pedi uma cachaça. Estava só. Os homens do local me olharam como "nossa, uma jovem linda por aqui, bebendo como homem....(o jovem e linda fica por conta da escritora....rs). Ofereceram-me, os jovens do barzinho, um aperitivo tão saboroso......por conta da casa....com tamanha doçura.....que concluo, agora: "somos mais humanos num boteco com desconhecidos que com nossos colegas de trabalho".

Desculpem-me pelo desabafo. Não me refiro aqui a ninguém especificamente e sim a um sistema DESUMANO que, ao final, não faz de nenhum de nós milionários ou bem sucedidos. Mas as relações humanas devem estar acima de qualquer coisa. 
Que não fosse comigo; que fosse com a menina anterior a mim; mas que ela pudesse se explicar, conseguir outro atestado, entrar com um recurso....."yo que sé".


O que sei é......nunca vi coisa tão horrível em toda minha curta vida laboral.
Ano passado consegui a mesma designação graças a falha de outrem. Hoje, leio a mesma experiência com outros olhos: será que foi justo? Acho que não...mas espero que aquele senhor esteja hoje bem melhor do que eu.


Um Abraço a todos!
OBS: Ofertas de trabalho nos comentários, por favor!

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Carta para Sofia

*arquivo pessoal.
....
Viçosa, 28 de janeiro de 2015? 

 Sofia,
 meu amor,
um pouco de carinho sempre é bem vindo, não?

Sim. Há tempos venho lhe prometendo um novo layout, uma nova identidade visual, mas devo-lhe todo o meu perdão. Entre todos com quem estive, conversei, sondei ou flertei, nada me pareceu realmente interessante. Sabes que não sou dada a vaidades, exceto minhas sobrancelhas que,por motivo qualquer, acho-as tão minhas, que não as confiaria a qualquer designer desses da moda, do local onde vivo (sabes que há tantos por aí).Por fim, prefiro eu mesma fazer o mal feito de repará-las, para não sentir o arrependimento de vê-las mal feitas por outrem. Há quem cuide do cabelo, do corpo, da alma, dos pés; eu cuido das minhas sobrancelhas, desde criança, quando já me diziam assim "parecem de mulher". Sinto o mesmo por você, pelo nosso espaço secreto.O layout virá, a identidade visual ou seja lá o que isso signifique; por hora, deixe-me escolher as letras mais toscas para firmar o seu nome no universo, ainda que agora seja apenas meu: Sofia de Buteco - ano VI.

Mas o que queria lhe contar, a ti e a quem entrar por estas terras virtuais, é que realizei alguns sonhos recentemente. Mal me dei conta da passagem do ano, e sabes, Sofia, o quanto sou supersticiosa para essas coisas. Pois na: estávamos dentro de um avião, confortabilíssimo, enquanto fingia eu assistir qualquer enlatado hollywoodiano para não morrer de fobia. Dez horas de mentira. Até chegar às terras dos conquistadores, tão graciosas que desnecessitam fotografias e merecem até o nosso "perdão"! (aspas! creio queme entende...) Passamos por Madrid, Granada, Sevilla e Avila; Lisboa e Coimbra. Dei-me conta, nestas viagenzinhas, dos abismos culturais que nos separam.....deles para conosco, que estamos abaixo da linha do equador. Não falo de pecado ou virtude; falo de gente, de comportamento, e sobretudo de semblantes e sobrancelhas.  

O primeiro empecilho foi o idioma. Curioso empecilho, mais desafio que qualquer outra coisa. Acordava, falava em espanhol, entendo perfeitamente, mas a certa hora do dia, ou da noite para ser precisa, ocorria-me algo interessante: o não pensar. As palavras passavam por mim desapercebidas, e já não podia mais entender o seu valor semântico e contextual. Cansava-me um pouco, sentia falta do meu idioma, das minhas brincadeiras infantis, dos meus ditados populares sempre desorganizados, iniciados pelo fim. Nestes momentos é que me dedicava a observar: as pessoas, os semblantes, as sobrancelhas, o mundo, as luzes, a noite, a fumaça do cigarro. Intuí uma porção de coisas que, destorcidas ou não, valeram-me de fuga espacial, como se no fundo estivesse eu sempre em diálogo constante contigo, Sofia, com a minha própria alma.

Do lado de lá, as pessoas são mais jovens: os pais e as mães sabem como educar os filhos de modo que estes aprendam desde pequenicos a ter independência, a fazer escolhas, a ser mais que um sobrenome conjugal. Encantou-me sobretudo as mães, tão jovens e tão mulheres, tão bonitas e femininas, como se a maternidade lhes fizessem um bem maior. Pode ser má impressão, mas aqui, nas nossas ruas, vejo mães possessivas e transtornadas, que confundem o amor maternal com obrigação ou hierarquia. Lá não: as mães são mulheres,como eu e como você.  

Não houve tempo para análises mais profundas, mas pareceu-me que aquela gente sabe viver bem, sabe desfrutar a vida, têm intuitivamente a noção de que esta (a vida) é curta e deve ser alegre: jantares, brindes, longas conversas nas "terraças", vinho, riso, cumplicidade. Algo que está além da condição financeira individual. Aqui, por exemplo, conheço pessoas que passam a vida toda trabalhando para a chegada da aposentadoria, suportando empregos insuportáveis, vidas-mortas, sem aperitivos, sem olivais. Eu pude ver lá, com meus próprios olhos, que a alegria é um estado de espírito. Em Portugal, ao menos, há o fado que em muito se parece ao nosso choro. Ali me senti mais confortável, porque de fato a saudade não é uma solução linguística "te echo de menos, mi amor" e sim um estado vital. Nunca conheci, por mais bruto que fosse,um brasileiro que vivesse sem saudade, sem fotografias dos seus mortos, sem histórias de infância. Pois bem: em Espanha, ao menos, optam pelo presente imediato, opção invejável - e que me faz compreender coisas muito pessoais, refiro-me, você sabe, a pessoas com quem convivo. Se apenas há o presente e a ideia da morte, escolhamos então o presente, cujo valor semântico é o mesmo que dádiva: Os Reyes deixam os presentes aos pequenos, e assim aprendem, as crianças, a desfrutar a vida, como nenhuma outra criança, porque aqui, ainda, vivemos sob o julgo cristão do Natal e do Papai Noel.

As amizades são mais intensas. Em muitos momentos vivi uma solidão desumana, a de desejar estar junto dos meus amigos de infância; a de pedir perdão a algumas pessoas ou, simplesmente, esquecê-las de vez. Desde que cheguei, todos os dias escrevo a dois ou três amigos chamando-os de "hermanos". Uma vontade desmedida de abraçá-los com carinho sem ser julgada, de dizer-lhes o quanto os amo, os quiero, e que gostaria muito de me fazer presente em suas vidas até o último sopro. Claro que nada é tão simples. Houve o estranhamento, o mal estar, o não saber lidar com uma ou outra relação, um ou outro semblante, uma ou outra sobrancelha. Somos tão ridículos, Sofia, tão pequenos.....bonito seria se todos pudéssemos fazer pequenos sacrifícios por aqueles que amamos, ou julgamos amor, mas isso não é fácil. Ás vezes é melhor desistir, é mais saudável, porque sabes.....entender o outro exige de igual tamanho virtude e pecado, e não conheço ninguém que tenha atingido essa perfeição. Foi difícil, muitas vezes.....mas então lembrava-me de qualquer coisa.....boba....como, por exemplo, saber que não morrerei em nenhum desastre de avião e, sendo assim, tenho tempo para amadurecer ou escolher estar ou ir. Somos jovens, Sofia, cheios de vida e de oportunidades.

Das coisas triviais, encantou-me La Alhambra. Profundamente. Como pode haver existido uma civilização tão rica, tão colorida, tão alegre. Mal sabem os espanhóis, mas creio que a carcaça e coração de "vividores" vem daí, e não de nenhuma ramificação da Opus Dei, ou de Franco, ou de Felipe I-II-III-IV. Há uma alegria árabe naquela gente, alegria suicida até, dessas de "bebamos hoje, amemos hoje, porque o amanhã é um deserto". Em Lisboa, o Fado....porque não poderia ser diferente. O charme de Lisboa, a paixão, o lugar mais romântico em que estive nesses 29 anos. Acrescido de uma deliciosa culinária, que, perdoem-me: incomparável aos huevos rotos, cocidos y tortillas com pão....(sim, com pão).

Conheci algumas pessoas encantadoras....(olha eu, novamente,falando das pessoas). Umas delas, cujo nome não nombrarei, mas que é uma mistura das minhas três avós e da minha mãe, em partes. Impossível não amá-la....impossível não devanear...."Será que um dia nos veremos de novo?". Porque tocou o meu coração, tratando-me como se fosse eu uma criança, o que foi ótimo, afinal, detesto bancar a femme fatale em idioma estrangeiro. Conheci outra mulher encantadora, por quem me apaixonei. Interessante que já a conhecia por nome, por histórias, por ditos e des-ditos; mas nunca imaginei que fosse tão graciosa (em português), tão amável, e dotada de uma generosidade tamanha....ainda que fosse falsa, a generosidade, não me importava. Uma voz aveludada que se dava ganas de ouvi-la sem parar, a contar sobre histórias cujos personagens nunca conhecerei. Outra saudade. E claro, outra mulher, muito divertida, igualmente doce, porém mais familiar.....para não dizer totalmente familiar. Pois bem: as três não serão esquecidas.

Conversei com duas ciganas. Ah Sofia! como resistir a esse povo tão sofrido, tão marginalizado e, ainda assim, tão interessante. A primeira, em Portugal, disse-me ....

"você é nervosa, mas tem  bom coração;
você é muito ciumenta, mas sabe disfarçar;
você será mãe de gêmeos.....
Você receberá uma boa quantia em dinheiro este ano...
- SÉRIO????
- SIM, Não Vê? acha que estou mentindo? - disse a cigana enfadada , era portuguesa.
Quanto a esse rapaz, ele sente vontade de dizer coisas mas não consegue dize-las, não o culpe....
Se me der mais cinco euros lhes tiro uma maldição feita por uma ex dele...."

Bem, de maldição em maldição aqui estamos todos sãos e vivos. Ou seja, não paguei para ver.

A segunda, madrillena e portanto sintética:

"Você terá dois filhos, com certeza. Pode ser que tenha um terceiro, mas não é claro.
Há um homem moreno apaixonado por você, não este aqui".

Deu-me uma folhinha de sei-lá-quê, a que só pude queimá-la antes de ontem. As coisas estavam tão ruins que pensei "talvez eu devesse...queimar aquela folhinha".

Agora o grande milagre, Sofia:

A neve? não. Emocionei-me ao vê-la, a paisagem nevada, a consistência da neve, o branco tão puro. Porém, perguntaram-me tanto sobre tal encontro que, já cansada, não tinha o que responder. Neve é neve, como terra é terra e já está!

O milagre se deu na Biblioteca Nacional de Madrid.

Levei comigo meu diploma de mestrado ("para alguma coisa ele tem de servir já...."). E tentei fazer um carnê de investigadora a fim de ver, com meus próprios olhos, uma das primeiras impressões de Auto da Barca do Inferno, datada de 1520. No primeiro dia não consegui, pois me faltava um comprovante de residência. 

Como consegui-lo?

O golpe de sorte foi que meu companheiro trouxe duas contas de luz - as que estão em meu nome - para serem pagas no Rio de Janeiro antes do voo para Madri. Assim, abdicando de qualquer outro monumento, museu, huevo rotos e terrazitas, voltei sozinha à Biblioteca Nacional, com todos os documentos e fiz o "maldito" carnê (cuja foto ficou extremamente feia, a ponto da guarda da sala Cervantes perguntar-me se de fato era eu).

Após tensos minutos de conversação....(estava naqueles dias de esgotamento linguístico)......eis que me trouxeram, na mesa 20, onde eu estava, o documento. Tão bem conservado que voltei à bibliotecária para lhe perguntar se se tratava de um facsímil.  

"Não, é original, de 1520".

Sendo o auto de moralidade original de 1517, o que são três anos? Sentei-me novamente à mesa e observei o documento como se me despedisse de um amante. Olhei, acarinhei, talvez dissesse um "eu te amo" se estivesse em terras lusófonas. Soube ali que nunca mais irei vê-lo. E foi então que me dei conta de que todo o meu sacrifício - da leitura escolar (uma versão, obvio), passando pela monografia, chegando ao mestrado e todos os percalços...... - valeu a pena. Eu finalmente encontrei o meu amado, que ali estava a dizer "obrigada por não haver me trocado por um contemporâneo tosco".

Despedi-me assim do meu grande amor. 
E fui comer uma tortilla, enquanto via a neve pela primeira vez.

Senti, e com seriedade, a vontade de fazer um doutorado; a necessidade de outro amante, de outra paixão. Porque esse senhor foi o primeiro [amor], mas haverá outros por aí, à espera de quem os encontre, casualmente, como deve ser. E claro, preciso de um orientador(a).

Cheguei ao Brasil há uma semana e ainda me sinto cansada. Já fui agraciada com uma série de problemas familiares, afetivos, de todos os tipos. Desempregada, ansiosa, fumando como uma chaminé......novamente, ansiosa, para que tudo se resolva........porque espero, pelo amor de Deus, que até os 35 anos eu tenha condições de......sei lá..........não ter mais fobia de avião.

E assim termina a minha aventura, Sofia.
Minha escrita é totalmente retórica, porque estiveste comigo nestes dezoito dias.
Espero, igualmente ansiosa, que façamos as pazes e voltemos a nos escrever.
Para tal, escolhi o primeiro livro do ano: Desassossego - de Pessoa.

Que nos ajude tal homem.

Semana que vem: currículos, leituras, yoga, aulas insuportáveis  e o que vier.....
Por hoje; só.

Um beijo,
Amanda.