terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

SATANÁS e EU: Nossa horta rebeldia.


Eu sei que a vida não foi feita para ser
Olhada aos olhos totalmente nus por isso não tire o véu
E enquanto ela caminha sobre o teu olhar
O sol aquece todo o seu andar e ela se esquece do céu
(Diabo - Manacá).

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Querido Leitor,
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Acordei com uma grande vontade de escrever; porém, com nehum tema muito interessante que me motivasse a fazê-lo...(não que meus temas sejam interessantes; mas hoje, realmente, não estou nada inspirada). É incrível como a tranquilidade não me inspira. Eu gosto é do estrago. Vou escrever um pouco sobre trabalho, sendo assim, para preenchimento de tempo e tabela. Para este fim, convido a você, querido leitor, a fazer comigo uma rápida sessão (ou seção?) regressiva até o longinquo espaço da minha infância: onde tudo começou!
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Estava na primeira série do primário. Sete anos de idade, cabelos muito longos; óculos cor de rosa, aparelho nos dentes, gordinha, chatinha - e a mesma paixão por escrever e pelas coisas invisíveis. Naquele tempo, sentava-me ao lado de um menino muito fofo chamado Paulinho, o qual marcara minha infância pelos lindos olhos azuis e delicioso hábito em me presentear com balas e doces, excessivamente! Vem dai o meu gosto por homens "fofos" que me presenteiem com doces, apesar do tenro clichê.
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"Tia" Ana nos pede uma redação sobre natureza. Eu, com toda minha vontade de aparecer, adorava ler meus textos em voz alta para a sala, de modo que não foi diferente naquela tarde de 1993. Comecei a leitura da minha redação sobre natureza, conforme o pedido da professora. O título da redação? Bem...
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"A horta do Diabo".
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Uma horta vem a ser, na minha concepção, uma mistura de pomar, jardim e cemitério, tal qual tínhamos em casa. Digo cemitério porque todos os nossos animais caseiros foram enterrados na nossa horta da casa de São Paulo. Mas isso estava no inconsciente, não tendo assim relação direta com a escolha do protagonista Belzebu.
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Após ler a redação para meus colegas, também de sete anos - redação cujo meu cérebro encarregou-se de deletar da memória, devido ao trauma e vergonha que passei - fui repreendida pela professora quem me disse, com essas palavras: "Amanda, você não pode escrever sobre essas coisas!!"
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Lembro-me da sensação de abismo! Sentei no meu lugar, segurando o choro. Paulinho se vira pra mim, rindo de minha cara, oferecendo-me mais bala. Sempre fui emotiva; desde pequena. Imagino que tenha ficado o resto do dia sem falar nada, pensando no porquê de não poder escrever sobre o diabo....no porquê do diabo não poder ter, assim como os seres de luz, uma horta para o plantio de suas coisinhas! Engoli o sapo: mantive essa história no subconsciente por quase toda a vida, imersa na escuridão da dúvida.
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Dezoito anos depois, cá estou com um novo projeto de pesquisa: Literatura e Satanismo. Talvez uma tentativa acadêmica - e por assim ser, "respeitada", "legitimada" - de se responder a um simples questionamento infantil, norteador da minha existência: Afinal de contas, por que o diabo não pode ter uma horta, como todos os seres de luz?
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O diabo é um ser de luz. Diabo significa "divisor"; Lúcifer, "filho da luz": tem-se aí um filho da luz, que divide. Mas a minha simpatia por essa entidade não vem das pesquisas acadêmicas, herméticas, engravatadas. Não! O diabo sempre esteve presente em minha vida, concomitantemente com a idéia de Deus, como se ambos me fossem faces de uma mesma moeda, senão o mesmo, em trajes e perspectivas diferentes.
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Fui criada na igreja católica. Pratiquei muitos dos ritos católicos ao longo da vida, por influência familiar, de modo que hoje, mesmo não me considerando católica, ainda sinto uma paixão imensa pelo catolicismo, pela história da igreja, pela tradição judaico cristã, pela religiosidade popular e tudo que ela evoca. Adorava "coroações" quando criança. Coroação é uma festividade popular em que crianças se vestem de anjos para "coroar" a virgem Maria. É claro que eu gostava por causa dos doces que ganhávamos após a cerimônia: o fato de estar no altar de uma igreja, cantando (eu adorava cantar!), coroando a virgem, ainda não me era um problema, até o dia em que esqueci a letra da música, o que me levou a uma imensa ansiedade, vergonha, culpa! Fiz xixi na roupa, na frente de todos, de tanto medo e pasmidão - sendo repreendida pela minha mãe, posteriormente. Idade? sete anos.....
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Coincidência ou não, o clima "religioso" sempre fez parte de mim, mas com uma óptica de rebeldia, questionamento. Com nove anos, li todo o Apocalipse, sem nada entender, mas li. Também aos nove, na ausência de meus pais, ao receber a visita de duas moças Testemunhas de Jeová, as quais minha mãe proibia-me de receber, devido a coisas que não cabem nesse texto, mas passíveis de inferirmos, aceitei o convite proposto pelas mesmas em vir até minha casa a fim de que estudássemos juntas a Bíblia. "O que você quer estudar, mocinha?" - disse a senhora. "Lúcifer" - respondi, sem pestanejar!.
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Com passar do tempo, sublimei essa curiosidade. Já na adolescência e juventude, nunca deixei a questão religiosa de lado: já visitei casas de umbanda, candoblé, cultos evangélicos, Mórmons, espiritismo pós moderno. Já frequentei o espiritismo kardecista, inclusive... Mas, a igreja católica sempre teve minha predileção. Não o catolicismo em si...mas a história da igreja, os ritos, a cultura, o imaginário! Em termos de fé, tento seguir os princípios da Teologia da Libertação, soldados a uma colcha de retalho em que misticismo e ceticismo dialogam abertamente. Minha religião é o humano - mas isso já é outra história!
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Fui Vicentina, Atuei (ainda atuo?) na Pastoral da Juventude...e embora meus antigos questionamentos não viessem mais a tona, com a mesma força, vez ou outra ainda me surgiam, em meio a uma conversa de butequim. Como no dia em que conversando com um amigo Padre, também jovem, questionei-o se não poderia a serpente do Gênesis ser na realidade uma face de Deus.
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Como estudante de Letras também é assim. Escolhi Letras porque gostava de escrever , além de acreditar ter mais chances em passar devido ao meu Inglês, que na época não estava dos piores, ao contrário de hoje. Mas a História é que me encantava, Hitória da religião!! Passei metade da graduação com esta dúvida na alma, infernizando-me. Foi quando ao conversar com um professor Historiador, fui surpreendida com uma novidade-velha: tal professor me aconselhou a não transferir o curso, alegando que poderia fazer o que gostava dentro da Literatura.
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Sempre gostei de Literatura, mas nunca fui uma leitora compulsiva como meus amigos, colegas e professores que conheço; pelo contrário! Até nas coisas que gosto sou preguiçosa. Mas também por uma conspiração, no ano dessa conversa conheci um professor que foi capaz de me encantar pela literatura, também por um viés histórico, apesar da preocupação estética. Depois desse "encontro", talvez o sopro da graça chamado paixão, porque o amor já estava, através de outros sopros , obras, textos, autores, histórias - e também colegas e professores - percebi que minha perspectiva religiosa é muito mais literária. É a fantasia que preenche a lacuna histórica que me instinga, e isso só encontro na Literatura.
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Mas esse papo chato é pra dizer que muitos dos autores que mais gosto são aqueles em que reconheço o elemento religioso: Clarice, Saramago, Antônio Vieira, Gil Vicente, Alvares de Azevedo, Alexandre Herculano. E que não da mesma forma, nem intenção, mas talvez "perspectiva", a Bíblia também pode ser lida por um viés Literário. Quer texto mais literário, polifônico, dialógico que o Livro do Apocalipse? Pessolamente, não só o Cântico do cânticos e Salmos são textos literários. Com excessão das epístolas, todos podem ser lidos com esse olhar "diáfano" de fantasia.
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Tudo isso pra mostrar, querido leitor, o que um trauma infantil é capaz de fazer....
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Muitas foram as situações, pré e pós trauma infantil, responsáveis pelo meu ecantamento com o Demo. Como podem notar, eu poderia escrever milhas e milhas linhísticas sobre o assunto, mas paro por aqui com uma citação do filme El secreto de sus ojos, capaz de resumir o sentimento que fica: “Una persona puede cambiar de nombre, de calle, de cara....perto hay una cosa que no puede cambiar: no puede cambiar de passión".
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Por fim, a pergunta que não quer calar:
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Por que o diabo não pode ter uma horta,
como todos os seres de luz?.

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Porque fomos acostumados a uma visão medieval do demo como ser monstruoso, animalesco, grotesco, horrendo, sanguinário. Tal visão católica tinha o objetivo de evocar a culpa no sujeito, um sujeito ainda ligado ao imaginário pagão, greco-romano. Não é acaso que muitos dos relatos que se tem do diabo, nessa época, aproximam-o de deuses Gregos como Pan, Hefésios, ou Minotauros, metade bode, metade homem, metade cachorro...e por aí vai.
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Em termos de imaginário, meu diabo é o Joohny Deep. Meu diabo é aquele quem age na surdina, secretamente, através da sedução. Quase como um bailarino, o diabo tem uma graciosidade e percepção do belo, talvez herdada de Deus, capaz de fazê-lo se aproximar do humano com mais afetividade que culpa, temor, horror, como nos ensina o catecismo da igreja. Quando criança - lá pelos três aninhos - minha mãe, que é meio carola, meio bruxa, meio eu, disse-me que no carnaval o diabo gostava de andar solto por aí. Eu, imaginando um sentido literal pra isso, perguntei a ela como era o diabo.: "Ele tem um rabão de gato" , disse-me.
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Quer coisa mais graciosa, elegante, sedutora que um caminhar de gato?
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Em termos de fé, não creio no diabo, exceto como uma face de Deus, do Deus cordeiro-serpente que habita todos os homens, todos os espíritos. Não acredito em maldade absoluta, tão pouco bondade plena. Somos frutos de uma história, um contexto, uma cultura, uma noção de bem, mal, erro, CULPA, e claro:
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Somos frutos dos nossos traumas infantis, dos nossos professores e dos "nãos " que nos são dados pelos mesmos.
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Já do ponto de vista prático, Satanás é a dúvida que inferniza o espírito. Todos os "ses" que ecoam em nossas mentes, do acordar até o dormir. Não existe no mundo nada mais demoníaco e tentador que um bom pedaço de dúvida...
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"E se eu mudar de emprego?"; "E se eu fizer aquela viagem?"; "E se eu deixar tudo por ele?"; "E se eu tivesse falado com ela?"; "E se eu tivesse feito de outra forma?"; "E se eu me arrepender eternamente?"; "E se eu abandonar o Pai, o Paraíso, levando somente minha horta e alguns anjos rebeldes, mudando-me para Amércia Latina? O que há de ser?

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Sendo-lhe negado o paraíso, Lúcifer mudou-se para o planeta Terra, habitando a América Latina, mais precisamente. Todo fevereiro ou março, de acordo com a mudança estelar, Capetinha visita o Brasil, camuflando-se em uma bela passista, porta bandeira, malandro de gafieira; ou, ainda, condensando-se em uma bateria de escola de samba inteirinha. Enquanto isso, Deus assiste ao desfile das escolas em seu camarote sagrado, do alto, à espera da chegada de seu filho pródigo predileto, cuja promessa em lhe trazer um bom litro de caipirinha e cachaça brasileira, além de fotos das principais "destaques" para toda milícia celeste, da ordem dos Serafins até a do anjinho da asa quebrada, é responsável pelo júbilo e euforia de todo plano celestial.
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Que Deus nos abençoe!
(E que eu não seja excomungada!).
Saravá!

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