segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ímã (ou taxistas,motoristas de Uber e Cabify, agentes imobiliários, profissionais de padarias, bancários,médicos,enfermeiras, travestis e prostitutas)

                                          Fonte: Imã. http://www.ehow.com.br/diferenca-entre-permanente-temporario-info_337226/



I. 
Um dos pequenos prazeres vitais daquela jovem mulher era ser um livro aberto:  contar aos amigos e conhecidos suas proezas e misérias tornava-a feliz, pois - livro aberto que sempre foi - compreendia qualquer ser humano como seu irmão. Dos problemas da vida até as notícias assistidas em noticiários de direita ou esquerda, sua felicidade consistia em narrar a sua vida e a vida de outros, como uma Literatura Universal. Não há nada mais belo, em seu entender, que a criança-humanidade.

Com passar do tempo, até essa pequena felicidade lhe foi podada. Se contasse suas alegrias, atrairia mau-olhado dos invejosos de plantão e nunca seria feliz. Por outro lado, se narrasse seu pessimismo ante suas circunstâncias ou blasfemasse pela dificuldade da vida, atrairia energias negativas que, igualmente, destruiriam seus projetos. O conselho e interdição veio de terapeuta, amigos, contatos, familiares, espiritualistas, cartomantes, tarólogos, videntes, médiuns, livros de auto ajuda. 


Decidiu então mentir.


Não contar a ninguém a felicidade e tampouco as decepções e frustrações. Não contar aos amigos, ao terapeuta, aos espiritualistas, à própria família, ao marido. Guardar tudo somente para si a fim de testar se todas essas pessoas estariam, quem sabe, certas e se esse, somente esse, fosse o motivo de que seus planos há muito  não se concluíam, fechavam-se em mapas teóricos e fracassados.


Com passar do tempo, esta mulher se isolou.


Acreditou nos ditos populares e tentou ser o contrário do que era. Pensava, porém, que ao contar mazelas e bençãos não significava nada, devido a sua pequenez diante da vida. Quem é essa mulher? Seria tão especial a ponto de que todo o universo conspirasse contra si apenas pela felicidade que tinha em receber conselhos, partilhar riso, aceitar críticas? Não tendo escolha ou a quem recorrer, decidiu optar por uma nova postura. 


Desde então, experimentou um sofrimento desmesurado. "Se conto que estou feliz... é um erro; Se conto que sofro absurdamente é também erro. Vou me calar". Passou semanas muda, afônica, ausente de verbalizações ou expressões escritas. Mas a angústia de não ter mais a humanidade como  companheira virou dor. Aguda, e por fim, crônica. 


Foi quando encontrou uma saída inteligente: contar a sua vida apenas aos taxistas, motoristas de Uber e Cabify,  agentes imobiliários, profissionais de padarias, bancários, médicos, enfermeiras, travestis e prostitutas. Esses, pelo desconhecimento da mulher, não poderiam dela ter inveja ou emanar energias negativas que lhe garantiram estar corrompendo sua vida. Porém a moça em questão nasceu sem pudor. Não suporta fofocas, não trai segredos confessados, não fala o que não convém. 

Seu fetiche era somente falar de si para o outro a fim de montar um arquivo mnemônico da própria existência e, seguindo conselhos alheios ou não, recolher o máximo de experiências humanas para compreender as próprias. Mas nem isso deixaram-na fazer. Pois, para especialistas de toda ordem, ela era um ímã. Era especial: como Midas, transformava tudo o que tocasse ou que a ela chegasse por casualidade. Mas supunha, a mulher, que era apenas mais um humano perdido-encontrado e, por essa razão, deu continuidade ao seu único escape: conversar apenas com desconhecidos.




II.
Cleiton (motorista de Uber)
- Nossa, gosto dessa música...que sofrência, Cleiton!
- Nuuu... essa música me arregaça.
- Como, Cleiton?
- Quero dizer, é uma música triste, né?
- Não Cleiton...você disse "arregaça" né...?
- Sim 
[respondeu com timidez]
- Pois essa música me arregaça pra caralho e vou te contar o porquê.
[...]
- Nó, minha esposa é ciumenta demais. Houve um dia em que parabenizei uma amiga no Facebook, pois ela ia se casar. A Marina comentou "Ah Cleiton, eu vou casar, mas só antes de você!".
- Quantos anos você tem, Cleiton?
- Eu tenho vinte e dois, mas sou amigado, para mim é casamento, sabe? Mas namoro minha esposa há sete anos, desde que tínhamos quinze. 
- Ela é ciumenta?
- Demais da conta sô! [risos naturais]. Nesse dia, ela escreveu a mulher "Nós já somos casados, querida! Cuide do seu marido que eu cuido do meu" - Morri de vergonha - comentou Cleiton.
- Terminou com ela? Brigaram?
- Não... Achei foi graça. Casamento é foda. Mas eu entendo o jeito dela, é insegura.
- Ai Cleiton, deixa eu te contar da minha vida...
[...]
- Nossa, que história. Tenha fé em Deus! 
- Eu tenho sim.
[Fim da corrida]
- Olha Lina, Boa sorte de coração. Confie em Deus!
- Obrigada, Cleiton. Eu confio. Vamos ver se nossas vontades se coincidem.
[beijos trocados, mas a esposa não poderia nunca saber]


III.

Joelma (atendente de padaria)
- Ai Joelma, tô eu aqui de novo comprando mais cigarro. Mas eu mal fumo, mal trago, é uma compulsão que ora vem, ora para.
- Eu entendo, Lina. O cigarro é uma espécie de companheiro seu. Minha irmã era assim, só deixou de fumar ao longo de anos. 
- Hum...mas o que eu faço para deixar o cigarro? Meu pulmão é bom, me preocupa é o gasto de comprá-lo na sua padaria, onde...vamos combinar...tudo aqui é caro demais!
- Acha que não sei? Mas no mercado é tudo mais barato, sabe? Nunca percebeu? E no boteco da esquina os maços de cigarro têm cinquenta centavos de diferença. Compre lá, cá entre nós, mas beba muita água, isso ajuda!
- Poxa, Joelma...você é muito legal...Que Deus te abençoe!
- Nada...Boa sorte para você no seu novo trabalho!



IV. Otto (agente imobiliário)
- Eu vim aqui porque este aluguel é absurdo, eu estou desempregada, separada, com doenças na família, sozinha e não sei o que fazer...
- Calma, Lina: O que está realmente acontecendo?
- Minha vida desmoronou.
[uma hora depois]
- Eu não te conheço. Mas se quiser, traga-o aqui que converso com ele. Finjo um futebol, chamo-o pra um bar e tento explicar que relações são assim mesmo.
- Nossa, você é como eu! Realmente faria isso? Mas penso, não vai adiantar nada, eu sei.
- Não, Lina, você não sabe. Tenho uma tia que quase se separou porque ela e o marido brigavam muito, muito, muito!! Imagina, uma mulher católica ao lado de um marido alcoólatra e que não acredita em nada.
- Se separaram?
- Não. Eu conversei com minha tia e a partir de então ela passou a ser estratégica. Mas tem que ser estratégica, viu? Voltaram, não se divorciaram e tiveram outro filho.
- Nossa...
- Lina, me manda um e-mail. Eu posso te ajudar. Confie em mim. 

V. João (Bancário)

- Eu preciso transferir esse dinheiro hoje pois vou fazer uma viagem...
- Ah é? Pra onde?
- Londres.
- Nossa, Londres, mas a libra tá muito alta, você é rica?
- Não, eu economizei por dois anos e meio para essa viagem. Estou desempregada mas resolvi mandar tudo ao inferno.
- Seu nome é Lina, né? Caracas, sempre quis ir a Londres. O que você vai fazer lá? Vai sozinha?
- Vou para um intercâmbio de Inglês, mas - cá entre nós - estou com o cu na mão com medo do meu dinheiro não dar...
- É, a Libra tá cara, tá cara demais! Esses países se acham os donos do mundo. Mas vai sim, só evite gastar com coisas desnecessárias.
- Ah, eu sou econômica.
- Bicho, muito feliz por você! Você é daqui?
- Não... Vim de outros planetas.
- Ah eu vivi naquele Planeta 10-40-22 também, mas era muito frio, então me mudei com minha mulher pro Rio.
- Ah, eu estou acostumada ao frio.
- Bom, Lina, Boa sorte! Qualquer problema, volte a nossa agência, fale comigo em particular que tento te ajudar a fazer seu cartão.
- Hoje é meu aniversário!
- Parabéns!!!!!!!! O da minha filha é daqui a dois dias.

VI. Renato, o belo (taxista)

- [...] Ai Renato, você acha que errei?
- Errou nada! Tira isso da sua cabeça! Compromisso é isso. Eu namorei minha atual por sete anos. Separamos-nos por um ano e reatamos. E é isso, senhorita, a vida tem dessas coisas. Quando se ama de verdade, se volta atrás, tenha certeza!
- Ela devia morrer de ciúmes de você, você - com todo respeito - é muito bonito e sendo taxista...
- Ah morria, me enxia o saco! Mas eu a entendia. Mas nunca a trai, nunca a trai, por isso terminei quando não dava mais. Só que voltei, porque sentia uma falta danada dela.
- Você fala com sotaque mineiro, mas não é daqui, certo? 
- Sou de Curitiba. Olha, a corrida deu R$23, 00. Mas me ouça, Lina: crises são normais. Em maior ou menor grau. Amor sincero volta.


VII. Augusto (médico) / Ana (enfermeira)

- Ai Augusto, acho que estou anêmica.
- O teste que você fará a seguir constatará seu nível de hemoglobina, assim veremos se você poderá doar sangue ou não. Sigamos com o questionário. Você está separada, mas, por quê? Seu marido te traiu?
- Não, não, foi porque ele não me entendia, só pensava nele, acho que era um filho da...
[toc, toc, toc]
- Oi,
- Doutor Augusto, verifique para mim se portadores dessa doença podem doar sangue.
- Ah que chatice, já disse  que não podem. Mas confiro aqui, calma. Corretíssimo: não podem.
- Obrigada! 
- De nada! (chata essa mulher, já falei mil vezes...)
[...]
- Então, Lina...você me falava sobre o seu marido....
- Doutor Augusto, eu nunca fui diagnosticada com DST, se é isso aonde o senhor pretende chegar. Estou preocupada com a anemia,  estou emagrecendo e perdendo apetite. Não quer olhar minha pálpebra?
- Desnecessário: o exame a seguir  garantirá resposta, Ok? Boa sorte na vida, você é divertida e inteligente!
[minutos depois]
- Lina, hemoglobina ótima, 14, 5 gd/l!
- Ai que bom, Ana, porque eu tava tão preocupada...tenho fumado muito e como pouco.
- Você fuma? Mas com essa pele de pêssego? 
- Ah...de vez em quando! Obrigada pela pele de pêssego, eu não sou tão jovem quanto pareço...
- Quanto anos você tem? Sério? É jovem, menina, vá aproveitar a vida... Mas pensei que tivesse vinte e dois....
- Ah, quem me dera, Ana. Se tivesse vinte e dois teria feito tanta coisa diferente.
- Eu também, viu, mas já tenho quarenta e quatro, pensa assim não sô. Vai lá, come um lanchinho, é de graça, aproveita!
- Ah se é de graça... menina, tô indo!

VIII. Uma travesti-prostituta

- Moça.... [surpresa....não era bem uma "moça"]
-Oi
- Ai desculpa, viu. Mas cheguei aqui sozinha nessa festa e tem um cisco no meu olho, estou perdendo a visão. 
- Bem, calma, vira aqui, eu assopro pra você. Saiu?
- Não.
- Então calma. Abre bem o olho que vou meter o meu dedo nele até sair...seja forte!
[segundos depois]
- Melhor?
- Nossa, demais, muito obrigada, você foi muito gentil!
- Naaaada, querida, se precisar de algo, eu fico neste ponto aqui. Cuidado com os assaltantes da área, mas você é da quebrada também, né non?
- Sou sim, acho....Cara, muito obrigada, Boa sorte no seu trampo!
- Beijoo, Gata!



IX.
Por respeito àqueles que a aconselharam, a mulher decidiu seguir a todos eles, de pessoas que realmente se importavam com ela ou eram pagos para tal. Esconder-se das armadilhas da vida, pois todos nisso acreditavam, como verdade de fé e fatídica. No entanto, triste como estava, encontrou uma cambalhota libertadora: narrar a vida a qualquer desconhecido. 

Transeuntes,

Mendigos,
Crianças,
Cobradores de ônibus,
Bêbados,
Desequilibrados,
Estrangeiros encontrados ao acaso e que nunca mais os verá,
Vendedores de coco na praia,
Deficientes visuais em viagens de ônibus,
Microempresários (principalmente vendedores de pasteis).



A felicidade voltou à mulher. 
Embora escondida na caixinha dos absurdos humanos. 
Humanos-crianças-irmãos: belos pelo absurdo que também 
Somos.








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