sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A (EL) CURA

*Antigos olhos azuis. Foto de Alexandre de Freitas Maciel.
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Disse Jesus: O Reino é semelhante a um pastor que tinha cem ovelhas. Uma delas se extraviou, e era a maior de todas. Ele deixou as noventa e nove e foi em busca daquela única até achá-la. E, depois de achá-la, lhe disse: eu te amo mais do que as noventa e nove. (Evangelho de São Tomé).
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Um pequenino verde homem, talvez azul, disse-me certa vez que meu destino era dar sete voltas pelo mundo,  a partir do seu estalar de dedos. Feito o ritual, estremeci-me toda, como se estivesse cercada de algo muito maior do que eu, talvez a presença solene e imediata de Deus. Sonho? nunca o soube. Embora meus olhos estivessem fechados, a sensação do real era plena e cheia de gozo, de modo que nunca me senti tão viva. Estávamos em  2004 e havia acabado de ganhar um milhão de novas fotografias, as quais me chegaram por compaixão e dor.
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Com passar dos anos, meu pequenino homem verde, talvez azul, nunca mais apareceu; sua ausência significou que tampouco eu dei sete voltas pelo mundo: permaneci e ainda permaneço no mesmo lugar, com pés e alma encravados num pedaço de chão que já não me diz nada. Há sim as coincidências sobre as quais, desconfiada que sou, por vezes penso serem sinais divinos, a fim de atribuir vida aquilo que já me é morte e medo. Uma pena, de fato, pois as montanhas daqui são as mais lindas que já vi, assim como certas flores brancas cujo nome desconheço, mas que se assemelham a estrelas com folhas muito verdes.
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Então me perdi em um labirinto concreto chamado maturidade. 
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Fui à procura de uma cigana, um padre, um xamã - qualquer alma cercada de carne que me pudesse, em minha cegueira, reconhecer algo sobre mim ou sobre quem sou. Também recorri à psicanálise; esta muito me ajudou, porém como metonímia e não todo. Gosto mesmo é de conversar com aquele homem xadrez que faz dos meus dias mais afáveis e de minhas angústias tenros jogos de amarelinha. Amo-o, o homem xadrez, como se amasse a um avô ou tio que ao ver uma criança em prantos de pirraça a presenteia com balas de maçã ou de morango. Poucas pessoas no mundo têm esse dom; o de tornar doce o amargo, sem que para isso use uma capa de herói, cetro de rei, estola ou bola de cristal.
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Hoje, contudo, a vida me respondeu, não com gritos alarmantes, mas com gargalhadas.
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Há tempos frequento certo Banco no qual trabalha um segurança muito simpático. Um senhor já de idade avançada, porém com olhos azuis de criança, desses que refletem o céu, desses que fazem inveja ao próprio céu. Nossa amizade desconfigurada é de longa data; sempre que vou a tal Banco encontro-o e ganho um sorriso. Ás vezes, deixa-me adentrar pela roleta que desemboca no centro bancário sem alarmes e constrangimentos, ainda que traga comigo chaves, celulares, moedas e afins. Temos um pacto sigiloso.
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A tristeza me chegou por volta das sete da manhã de hoje. Tristeza dessas que te fazem querer ser atropelada pelo primeiro ônibus, na primeira avenida, no primeiro minuto. Suicídio? Não. Curiosidade. A de saber como é a decomposição da carne, dos ossos, dos órgãos e por fim, da alma. Porém, morrer é muito sério e, ultimamente,  repudio  tudo o que é eterno ou deveria sê-lo.
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Quando perguntam-me como estou digo implacavelmente "indo". É uma mania besta, sem mais. Quase nunca há contrarresposta  porque estamos muitos ocupados com nossas vidas e obrigações. Mas escolhi ir ao Banco, hoje, às dez, apenas a pagar uma conta atrasada da qual ainda me envergonho.
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Pois bem. Encontrei tal senhor hoje, o de olhos tão azuis. Sorriu corriqueiramente, deu-me a senha do caixa (sou péssima para modernidades....) e perguntou-me:
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- COMO VOCÊ ESTÁ?
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Suspirei fundo, como quando se tem um espasmo noturno e respondi sem dar-lhe merecida atenção.....
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- EU? INDO.......
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Foi quando o milagre aconteceu.
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- INDO PARA LUGAR NENHUM, NÃO É?
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Meu querido amigo não sorriu; sequer olhou-me com aquele azul sobrenatural; em vez disso, gargalhou.
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Gargalhou como criança, gargalhou muito: como pássaro, flor branca, pequeno diabo - não sei, tenho dúvidas...Mas gargalhou profundamente como se me fizesse, naquele Banco do meu país, uma transfusão de alma em mim. Percebi que não tenho ido, e já há tempos, à parte alguma. Não sou, não estou; muitos me subestimam; poucos me conhecem; eu não.
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Indo à parte alguma. Meu destino é o nada, ausência pérfida e vazia - disse o segurança do Banco, enquanto cessava um delicioso riso maníaco. Disse também, por telepatia, que a dúvida não é o estrago maior; tampouco a curiosidade da morte ou a vontade de desaparecer. O único erro humano é o medo de não partir. Medo de não sair de si e dar  sete voltas pelo mundo, seja mundo externo ou interno.
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Ainda assim, assustada com tamanha revelação, em seguida busquei a cigana, o padre, o xamã - porém todos estavam demasiadamente ocupados... (O homem xadrez está viajando).
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Foi quando o estalo surgiu e finalmente compreendi a resposta divina: meu pequeno verde homem,  na verdade, era realmente azul; meu pequeno verde homem já não é tão jovem. É um oráculo idoso disfarçado de segurança do Banco do Brasil.
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Meu pequeno-idoso-homem se chama cura: e me intimou, uma vez mais, a iniciar minhas sete voltas pelo mundo. 
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"Agora, antes que seja tarde".

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