sexta-feira, 26 de abril de 2013

Epifania odontológica


*dentista - Gabriel Sarabando

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Para Juliana - nossa dentista familiar.
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Quando nasci, não havia chupeta que me calhasse, já que gostava mesmo era de dedo na boca: o polegar substituía o "bico" enquanto o indicador fazia-se cócegas no nariz, mania que sobreviveu à passagem do tempo. E daí? Bom, tal costume me levou a uma deformação da arcada dentária, responsável pelos inúmeros aparelhos dentários ao longo da vida, cirurgia para modelagem gengival, trauma infantil e medo de dentista. Sou a mais velha de uma série de primos e primas por parte de mãe; quase todos passaram pelo meu colo; eu, em contrapartida, passei por todas as perguntas odontológicas infantis possíveis e impossíveis:
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- Por que seu dente é assim?
- O seu dente é dente de coelho?
- Você pintou a gengiva?
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Tenho sorriso alto e já me deixaram claro que, na ausência de fio dental, dificilmente haverá dentadura que me sirva. Ano passado, a gengivoplastia me rendeu um sorriso mais harmônico; o branco do dente sobressai à pele morena, ampliando desproporcionalmente o incisivo central, rei do meu palco dentário, estrela pai do meu céu que é a boca. Sorte que sorrio também com os olhos...(e dizem que me saio bem!).
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Houve contudo um dentista especial, o primeiro deles. Um dia, disse-me que se cuidasse di-rei-ti-nho dos meus den-ti-nhos, ganharia um di-plo-mi-nha do dente! Foi um dos dias mais especiais da minha então vida infantil, quando obtive meu primeiro sucesso em papel, mediante a tantos fracassos odontológicos que tal documento cheio de cores precedeu. Mas algo espetacular estava por vir....
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Na igreja que frequentávamos, existia um jovem padre sempre loiro e de "hábito" preto. Pode ser que o "hábito" não passasse de camisa preta e clédima, mas prefiro imaginá-lo como Batman, cuja longa capa negra se arrastava pelo tapete vinho dos corredores eclesiais. Talvez não fosse padre e sim curioso beato, mas que era loiro  disso tenho certeza!
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Um dia, levaram-me ao dentista (o do diploma infantil) e me deparei com o suposto padre sempre loiro, o da  capa de Batman, na sala de espera. Meu estranhamento se deu ao vê-lo em colorido, sentado como qualquer mortal à espera do mesmo dentista que eu. O sorriso antecedeu a epifania:
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- Mãe, o padre tem sorriso de coelho!
- Psiu!
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Não só isso, era largo como barca encantada na qual cada dentinho - ou dentão - era anjo ou capetinha em busca de céu ou inferno. 
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- Mãe, o padre tem um bocão!
- Cala boca!
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Já não me lembro daquele dentista, só sei que era gordo e calvo; mas o sorriso do padre nunca esqueci. Tempos depois, eu-adolescente, reencontrei-o ainda loiríssimo, porém casado. Provavelmente desistiu do sacerdócio antes dos votos, casando-se e multiplicando-se em sorrisos  altos e epifânicos. 
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A odontologia é um sacerdócio. 
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Um comentário:

  1. Eu também passei por maus bocados com dentistas na minha infância, no fim das contas acabei desistindo do aparelho corretor de tanto ouvir que o problema seria difícil corrigir...

    Não sei se o dentista gordo e calvo fez um bom trabalho no padre, mas em você não tenho dúvidas, ele merece aplausos se for um dos responsáveis pelo sorriso lindo que você tem hoje!

    Excelente texto querida!

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