terça-feira, 1 de setembro de 2009

Cleiton Lelis Lopes Milagres (1988 - 2004)


"Amanda,
Espero que a sua vida seja uma luz
para com que você mesma
possa se iluminar.
Leia e Reflita
Feliz Ano
Novo
Cleiton"
(2004)

A primeira vez que ouvi Cleiton chorando foi numa noite de 1988, na casa de minha avó Maria, em um lugar chamado Tombo da Cachoeira. Ele tinha poucos dias de vida; era tão pequeno, tão miúdo, como nunca havia visto até então, no auge dos meus 3 aninhos de idade. Recordo-me de não entender o porquê de tanto chororô; choro aflito e insistente, como se quisesse voltar para o lugar de onde havia vindo o mais rápido possível, lugar com o qual nunca deixou de ter certo contato...
Lembro-me desta cena com tal perfeição que chego a acreditar que Cleiton e eu construímos uma ligação mística, “espiritual”; destas ligações estranhas que encontramos e tecemos com poucas pessoas ao longo da vida.

Vi Cleiton nascer duas vezes. A primeira delas, da qual falarei hoje, deu-se no dia 1º de setembro de 1988: Há 21 anos nascia Cleiton Lelis Lopes Milagres, meu irmão caçula (embora sejamos primos, na realidade).

Cleiton era filho único, assim como eu; dessa forma, apesar d’eu ter morado na cidade de São Paulo, até os meus 18 anos, e Cleiton, na zona rural do município de Canaã, praticamente a vida toda, nós dois nos tínhamos como irmãos. Quando criança, eu passava meses em Minas Gerais...(maio, julho, dezembro, janeiro); depois, quando entrei na escola, e por fim, já adolescente, sempre vinha aqui nos meses de julho, dezembro, janeiro....tempo esse que foi suficiente para estreitar nossa ligação. Cleiton viveu um ano em São Paulo também; víamos-nos todos os finais de semana, embora ele não morasse conosco.


Vivi bons momentos ao lado desse irmão. Quando pequenos, brincávamos de casinha, comidinha (fazíamos bolinhos de terra, salada e arroz com as flores da minha avó...flores que comíamos de verdade....); brincávamos de carrinho, queimada, “bola”, peteca, velocípede; fugíamos para a cachoeira que havia no campo de futebol, no “Tombo”, lugar “mágico”, da minha infância, onde minha vó vendia chupi-chupi aos domingos...(em Minas vocês falam “geladinho”, né? ou será o contrário?).
Brigávamos muito...muito mesmo. Eu, como “a mais velha”, implicava muito com o pobre, e por qualquer motivo; acho que sentia ciúmes dele, com minha avó, tios, mãe, mundo. Lembro que disputávamos acirradamente o uso de uma velha gangorra de pneu, existente na casa da minha avó; eu, como prima “visita”, e mimada como sou, sempre era privilegiada...rsrs.

Brigávamos porque ele gostava de me imitar; tudo o que eu fazia, ele fazia igual; tudo o que eu tinha; ele também o queria, exatamente igual. Brigávamos para ver TV; brigávamos porque ele não comia a comida toda; brigávamos por que ele era chato e irritante; brigávamos porque eu implicava com o menino; gostáva de provocá-lo e enchê-lo. Brigávamos porque existíamos e respirávamos. Uma vez, bati a cabeça de Cleiton contra a parede com tanta força, que pensei que fosse matá-lo.
Já levei algumas boas broncas também, por causa de meu irmão: havia dias em que o menino cismava em fazer qualquer coisa perigosa, e é claro que sobrava para mim, que levava umas boas chineladas de minha mãe, por “induzi-lo” a fazer arte...

Aprendi muitas coisas com esse menino...e também coisas transmitidas por minha mãe, em razão de nossas brigas e guerras, as quais nunca vou esquecer. Como por exemplo, o respeito que devemos ter para com aquilo que nos é diferente. Uma vez, quando ofendi Cleiton chamando-o de "bichinha"...(coisa de criança...), minha mãe, sensivelmente, pediu que imaginasse como me sentiria se fizessem o mesmo com um filho meu: "um dia você vai ter um filho" - disse ela. Não sei porquê, mas nunca esqueci essa fala, e nunca mais o insultei de tal forma...(mas de outras sim...kk). Coisas de criança...


Foi um período longo, esse das brigas e pirraças; na verdade, quando éramos bem pequeninos, nos dávamos muito bem...éramos como “namoradinhos”, segundo todos. Sempre abraçados, juntos o tempo todo. Depois veio a fase da discórdia, que foi longa, pelo que posso lembrar. Quando Cleiton viveu em São Paulo, brigávamos tanto, tanto....E como era bom, ter com quem brigar, brincar, partilhar a vida.....
Brincávamos de cavaleiros do zodíaco, de subir em árvores; brincávamos de celebrar missas também, rezávamos muito juntos....íamos ao cinema, Mc Donald´s (eu comia o meu lanche e ao dele, kkk), parques....entre outras coisas. Gostavamos de passar cal de parede no rosto também...(quando bem novinhos).

Na adolescência, a fase “trash” cessou; voltamos a ser cúmplices, em algumas coisas, não todas. Nessa época, minha avó morava em São Miguel do Anta, e lembro-me de que passávamos horas e horas conversando, na pracinha da cidade, dando-nos conselhos amorosos. Cleiton ajudava-me com meus “peguetes”; eu, o ajudava a tornar-se menos tímido com as mulheres....kkk. Ainda nos irritávamos muito um com o outro, mas creio que esse comportamento seja particular da minha família, para com aqueles que mais amamos. Nessa época, Cleiton era apaixonado por uma menina linda, chamada Juliana.
Assistíamos filmes até tarde; filmes de terror; também novelas mexicanas.
Mantínhamos contato por cartas, cartões, etc.
No dia 16 de abril de 2002, nossas vidas mudariam por completo. Cleiton sofreu uma crise desconhecida, que quase o levou a morte. Mais tarde, viemos a descobrir que se tratava de um vírus vegetal o qual surgiu na válvula de seu coração, ocasionando um quase derrame. Naquele dia, lembro-me de que acordei assustada ao ter a impressão de ter visto um cadáver, ao lado de minha cama. Mais tarde, recebo a notícia da internação de Cleiton. Foi quando meu castelo caiu, castelo cor de rosa e perfeito que havia construído ao longo dos meus então 16 anos.

Em função da doença de Cleiton, voltei a rezar; na época eu havia terminado a crisma, e estava numa das minhas fases “anti-catolicismo...” kk; fiz a promessa de que se Cleiton fosse curado, passaria a fazer um trabalho voluntário qualquer, alguma “caridade”...(era o que buscava, a princípio). Por meio dessa promessa, conheci a Sociedade São Vicente de Paulo, tornando-me “consorcia” um ano depois, e ajudando a fundar uma conferencia jovem alguns anos depois desse incidente. Milhões de janelas se abriram a partir daquele abril, janelas que continuam se abrindo e que me trouxeram até aqui e me levam diariamente a outros lugares, em contato com mundos próximos e distantes de mim.

Cleiton teve alta. Conversamos por telefone, alguns dias depois; mas eu não consegui dizer nada além de chorar compulsivamente...Depois desse acontecimento, nos tornamos ainda mais unidos. Ao longo dos próximos dois anos, viveríamos momentos inesquecíveis de partilha, amizade, escuta, ombro amigo, e tudo o que imaginarem. Também nessa época nutria uma paixão platônica por um carinha, que também veio a falecer, antes de Cleiton; recordo-me de visitá-lo, acompanhado de meu primo, inúmeras vezes....
Rezávamos muito nessa época. O terço, diariamente. Acreditam? Kkk

Cleiton faleceu no dia 18 de outubro de 2004. Assim que me mudei para Viçosa, a contra gosto, ele foi obrigado a mudar-se para São Paulo, a fim de continuar o seu tratamento. No início daquele ano, meu irmão teve uma recaída, sendo necessário para sua cura um transplante de coração. Cleiton conheceu minha grande amiga Cinthya, cujo aniversário é também hoje, coincidentemente. Mais coincidência, é o fato de que ficou internado no mesmo quarto onde a mãe de Cinthya ficara antes de falecer, vitimada pela doença de Chagas, no INCOR. Hoje Cinthya é médica.
Foi um período difícil. Em função de um sonho que tive numa terça-feira, percebi que Cleiton precisava de mim. Fui para São Paulo, às pressas; ficamos juntos de quarta à sábado à tarde; No domingo, ele veio a falecer. Fui, literalmente, a última pessoa a vê-lo com vida, isto é, a última pessoa a vê-lo pouco antes da sua nova vida.....

A sua vida foi um milagre. A última coisa que Cleiton me disse, antes de partir, foi para que eu fosse feliz, e que tentasse de qualquer jeito. E tenho tentado fazê-lo, desde então.

Cleiton foi um menino sensível; um menino do campo, da roça, da terra, das flores. Branquinho, nerd, usava óculos e falava mansamente sobre as coisas. Gostava de comer omelete. Gostava de biologia...seria um bom biólogo ou veterinário, se tivesse tido tempo. Cuidava dos animais, das plantas, das flores da sua mãe e avó. Tinha uma devoção profunda por seus pais, a quem amou a vida toda. Questionava a pobreza, as situações de violência e exclusão. Detestava cigarro. Adorava um forró...apesar de não saber dançar. Gostava de computador, informática, tecnologia, jogos. Teve em mim o seu primeiro amor; depois a Juliana, pessoa por quem nutriu muito carinho. Seus melhores amigos eram suas primas Bruna, eu, suas amigas de escola...(dentre elas a Raquel, única que conheci...faz Pedagogia na UFV hoje...), Suelen; tinha mais amigas mulheres. Amava seu avô. Amava São Miguel do Anta; mas queria morar em Viçosa, conosco. Gostava de Titãs...(a música Marvin). Dizia que eu seria uma freira escritora, cujo livro , nomeado “Cinco Minutos”, daria-me condição para viajar o mundo. Apresentou-me o Leandro, outro grande primo –irmão. Gostava de cantar no karaokê. Analisava as pessoas, psicologicamente. Acreditava em Deus, e em milagres.

Qualquer dia desses nos encontramremos por aí, "tá ligado?"...

7 comentários:

  1. Já tava sentindo falta de coisa nova - rsrsrsrs.
    Que relação mais bonita hem, Amanda???
    É tão bom encontrar pessoas com as quais podemos crescer na relação, na partilha, na identificação e até mesmo nas "brigas"...
    Pena que ele se foi tão cedo...

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  2. Amanda. bonito e profundo o seu post. Obrigado por partilhar com todos nós essa experiência. d. Pedro Casaldáliga sempre diz que há apenas dois tipos de pessoas: os vivos e os ressuscitados. A relação de vcs dois nos faz lembrar disso. Abraço carinhoso.

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  3. PRima, como vc disse...nada é por acaso, às vezes o primeiro choro dele realmente era de quem queria voltar de onde saiu, mas havia alguma coisa a ser feita aqui. Cleiton era um garoto muito especial, e um primo que gostava muito, e apesar dE ter tido "pouco tempo" com ele, foi um tempo bom...da qual nunca vou me esquecer.
    Lembro-me da árvore que tinha do outro lado do campo, uma árvore "mágica"...um "parque de diversão"...com "gangorra", "pula-pula", "escorrega"..tudo da própria árvore. Engraçado, um tempo depois do ocorrido, voltei la para ver como estava, mas a árvore havia se secado, existia apenas um tronco grosso e sem graça, sem folhas nem nada!
    "Recordo-me de não entender o porquê de tanto chororô; choro aflito e insistente, como se quisesse voltar para o lugar de onde havia vindo o mais rápido possível, lugar com o qual nunca deixou de ter certo contato..."
    Hoje, Cleiton deve estar no lugar em que queria estar...quem sabe la exista essa árvore, exista a cachoeira para onde vivíamos indo fugidos...HSAHSHAU
    Enfim, foi uma fase boa, mas uma fase que se acabou, mas que não quer dizer que não possa continuar.
    Beijo. Te amo prima.

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  4. ahh, sou manteiga derretida mesmo! snif....

    mas de uma coisa eu tenho certeza: nossas relações e laços dessa vida perduram por muitas outras...essa é a vantagem de se crer wue não há morte, mas sim um breve desencontro. Queria ter conhecido esse seu irmão...

    bjuss saudades

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  5. obrigada pelos comentários gente! Quem sabe um dia não nos encontramos todos, nesse grande banquete que é a vida eterna, não é?? Enquanto isso...a luta nos chama!
    Beijos a todos!

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  6. Que bela relação!
    que belo expemplo de vida!
    Irmã, sei bem o que é perder alguém tão cedo, o que nos conforta é saber q eles estão num lugar melhor que o nosso, enquanto isso, vamos fazer o que vc msm disse, ir a luta, para tornar nossa vida, melhor de ser vivida!
    bjo


    viu, so como comentei!! uahauah

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