sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Tudo sobre minha mãe (II)


*Mãe e filho. Foto de Luis Phillipe Santos.

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Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
[...] Só as mães são felizes.
(Cazuza - Só as mães são felizes)
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Já chorei várias vezes em banheiro limpo ou sujo; aliás, acho que lágrima e banheiro são duas coisas que se atraem. Lembro-me da última vez em que o fiz: estava no banheiro do departamento em que estudo, quando tranquei-me por lá e só sai após a queda da lágrima, a que estava engasgada. Já chorei em banheiro químico, banheiro de casa de amiga, banheiro de boteco, banheiro de seminário religioso, banheiro de hotel.
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Todas as mulheres passam por isso; nove entre dez. Minha mãe, entratanto, não. Minha mãe engole o choro e respira fundo, brava e vermelha. Só chora na minha frente, como se dissesse "também sou carne", como se o espelho tomasse vida e forma, eu-espelho- dela.
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Assim tudo começou.
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Dos males da infância, somente o intermerdiário: embora nunca tenha me vestido com seios postiços ou enchimento para o bumbum, tal qual fizera a mãe com a pequena Mandy Jackson, mamãe certa vez cismou em me colocar num curso de modelo/manequim quando eu tinha oito anos. A notícia só me chegou após a matrícula já feita, de modo que num sábado de 94, acordou-me muito cedo com as seguintes palavras: "Amanda, já acordou?". "Pra que acordar se o pesadelo começa agora, mãiÊ!" - podia ter dito, mas não o fiz simplesmente por não imaginar o que me esperava...(eu sempre atrasada para as coisas da minha própria vida).
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Sim: só as mães são felizes.
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Gostava do sanduíche que vendiam na "cantina" do lugar. Na verdade, isso era a única coisa que me atraía para a futura vida de modelo, a que minha mãe sonhara pra mim. Não sei de onde tirou tamanha loucura, eu que era uma criança fofa, tímida...e astigmática. Na verdade, ainda me pergunto em que planeta habitava meu pai, a pessoa mais sensata da minha casa, por ter acompanhado, em silêncio, esta e outras sandices de mamãe.
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Pois bem.
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Tínhamos aulas de passarela. "Obrigavam-nos" a caminhar em linha reta, intercalando cada pisar entre artefatos de bambu, os quais marcavam o tamanho de cada passo a ser dado. Pra mim, uma missão impossível: sempre caminhei em diagnonal e com os pés em "en dehor" extremo, como "quinze pras quatro". Havia também aulas de teatro. Sou apaixonada por teatro, fiz algumas aulas já adolescente, por ocasião de espetáculos de dança, e modestamente, acho que levo jeito pra coisa. Isso não quer dizer, no entanto, que eu não abriria o "berreiro" ao ser escolhida pelo professor de teatro (...um ator profissional que fazia propaganda de "nao sei quê" na TV) para simular uma cena de "first date":
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Ele: - Você vem sempre aqui?
Eu: (silêncio).
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Neste dia, chorei. Pedi a Deus que não pusesse mais os pés naquele lugar, que a insanidade de Dona Maria-Francisca tivesse fim. Mas continuei.
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Tivemos uma aula de etiqueta certa vez. Devo ter simulado uma súbita virose, porque não fui nesta dita aula, a que hoje me faz uma falta enorme. Porém, não escapei do "teste final" de passarela com uma professora que, ao me ver vestida de colegial, eu já aos nove, disse-me que eu tinha uma beleza exótica, que um dia seria uma mulher muito bonita, enchendo assim o coração de mamãe com a amarga erva da espeança.
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Gravamos um comercial. Uma simulação, digo. Conformada, havia entregado os pontos e me apegado à idéia de que em seis meses meu "mico semanal" teria fim. Escolhi um comercial que achava legal: em que a Denise Fraga interpretava uma doméstica, a fim de vender um produto de limpeza famoso na época. Mamãe vestiu-me como tal. Confesso que fiquei uma gracinha, e o comercial mais gracioso ainda..."cera-ceradeira-cera-ceradeira" - eu repetia isso 346 vezes e as pessoas iam à loucura. De fato, eu era uma das melhores...(rs).
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Desfilamos de biquíni uma vez e eu quis morrer. Mas não morri! Sobrevivi e doze anos depois, passei no vestibular para Letras, sepultando assim todos os sonhos de mamãe com relação ao estrelato de sua filha única.
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Certa vez, disse-me um dos meus ex´s namorados:
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- Você é muito parecida com a sua mãe! Você se queixa tanto dela, mas às vezes é chata como ela, neurótica, briguenta (sim Amanda, você é briguenta) e sempre acha que é a dona da razão.
- E você é um babaca, meu amor - poderia ter dito para defendê-la, mas não o fiz. Calei e chorei muito. Ainda éramos apaixonadas pelo rapaz que, sem saber, livraria-me de um grande prejuízo naquele instante...
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...o de passar uma vida ao lado de alguém que te ama pelo que você não é (ou pelo que você também é, mas só nos dias de sábado).
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Somos parecidas em muitas coisas e diferentes em tantas outras. Intuitivamente, sempre decidimos tomar banho na mesma "fração de segundo", e daí o eterno comentário dela "...só porque eu já ia...". Costumamos escovar os dentes enquanto caminhamos pela casa, momento este que utilizamos para pensar na vida e nas coisas do dia. Temos medo de elevador e de altura; da morte e das dores de cabeça do meu pai. Gostamos de criança, de adivinhações do futuro e de dramatizar o passado e as perdas cotidianas.
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Ainda assim ela é bem mais esperta do que eu: sabe nadar, cozinhar bem e aprendeu a dirigir, embora dirija muito mal. Veio pra São Paulo aos 26 anos a fim de dar uma guinada em sua vida: trabalhou, conheceu meu pai, casou e me deu à luz. Quando me viu pela primeira vez, já sabia que eu era a sua filha.
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Não há um só dia em que não briguemos. Hoje foi um deles, com direito à lágrima, banheiro e o clichê "...agora acabou". Ela sabe como me irritar. Confesso que muitas vezes chego a odiá-la, talvez porque soframos do mesmo mal: o da falta de fé.
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O que nos une, entretanto, é o gosto pela palavra: mamãe não só me ensinou a falar, mas também a escrever, quando eu tinha quatro anos. De todas as coisas que me faltam, da coragem ao jeito pra passarela, a palavra é o meio que encontro para amenizá-las todas. Um "sim" que dizemos ao acaso, um "não" que pronunciamos entre-dentes, ou, ainda, um email que enviamos, uma carta que não entregamos, uma assinatura que nos permitimos, podem ser os responsáveis pela mudança de toda uma vida.
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Um dia, na casa de minha avó, encontrei uma carta de mamãe informando a TODOS de que eu havia tido a tão esperada (por ela) menarca. Envergonhada, rasguei a carta em pedacinhos, e descobri, naquele momento, qual locução adjetiva que melhor qualifica a pessoa de Maria-chica: "SEM NOÇÃO".
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Mas até o amor tem um viés "sem noção", inexplicável: ao suportar o trânsito da segunda à sexta, ressuscita ainda melhor no sétimo dia e se esvazia no domingo à tardezinha. Para recomeçar bem.

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Porque sim: só as mães são felizes.

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