segunda-feira, 23 de abril de 2012

A Mania de nós todos


*Loucura renovada. Foto de Paulo César.
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Era uma vez um senhor de meia idade. Todos os dias, este senhor, um tanto calvo porém elegante, ia ao correio e levava em mãos um pacote misterioso. Neste envelope, havia treze cartas, treze cartas para os treze filhos que dele já não se lembravam mais. Solitário em uma casinha do interior, era tido pelos vizinhos e amigos como um homem reto e de boa conduta. Ninguém sabia, contudo, o mistério das cartas e da ida diária, quase religiosa, ao correio da cidadezinha mais próxima. Alguns, especulavam a existência de treze filhos espalhados pelo mundo, filhos com os quais o senhor - que se sentia à beira da morte - já perdera o contato em função desses "causos" familiares, muito incidentes nas minas gerais. Magro, olhos azuis, sem chapéu; mas com mania de carta, e quando o sofrimento lhe apertava o coração, escrevia-as com mais afinco, como se todas as linhas, escritas tortuosamente, fossem capazes de um milagre qualquer. Ninguém nunca soube o que se passara com aquelas cartas, já que o senhor - a cada dia mais debilitado - não recebia resposta alguma.Era um senhor com mania de cartas.
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Era uma vez uma mulher elgantíssima. Diariamente, a tal mulher ia às compras, levando o cartão de crédito do marido. Ao voltar para casa, com milhares e milhares de roupas de marca, trancafiava-se em sua suíte, longe do amante e dos filhos, e se dopava com uma expressiva dose de remédios tranquilizantes. Já fora bonita a mulher - ruiva e de olhos tão verdes desses em que se mira o universo; contudo, amargurada pelo mistério da infelicidade, encontrava em suas capsulas, bolsas e sapatos uma estranha força para continuar a vida. Jovem que era, precisava continuar. Era uma mulher com mania de capsulas, bolas e sapatos.
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Era uma vez uma criança. Uma criança que limpava seu ranho na parede do quarto do avô - sempre do avô- e isso não é tão importante, pois todas as paredes de uma casa são iguais. Feliz, jogava bola de gude com seu irmãozinho menor, até ganhar de presente de Natal o playstation que sempre sonhara. Ainda assim, continuava a limpar o ranho na parede do avô, já que ambos tinham o mesmo nome. Era uma criança linda, mas com mania de limpeza nasal nas paredes de um avô.
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Era uma vez uma jovem mulher. Inteligentíssima, madura e dona de si; pecava pelo fato de ser ninfomaníaca. "Pecava?" - não havia pecado naquilo, visto que a mulher era tão inocente quanto uma rosa; porém, apesar disso, não tinha controle sobre seu corpo e vontade, limitando-se ao fugaz, passageiro devaneio de todos os homens que a cobiçavam. Infeliz, não era o dinheiro, não era o conforto que lhe traria paz em sua vida, senão um afago sincero - que talvez nunca o tivera em vida, nem mesmo do próprio pai. Era uma vez uma mulher, forte, mas que se violentava de quando em quando, para se sentir viva. Uma mulher com mania de si mesma.
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Era uma vez uma mãe. Uma mãe que nunca ousara queimar um soutien: vivia para o lar. Gostava mesmo era de imaginar que um dia, num futuro longuinquo, viajaria de avião para o lugar mais distante a fim de conhecer o céu. Quando rezava - católica que era - mirava o céu com olhar pueril de quem pede graça sem verbalizar, de quem acredita sem lutar. Depois de rezar o terço, preparava o jantar, esperava o marido, acarinhava o filho mais velho e sonhava no dia em que, quando melhorassem as finaças, viajaria de avião até a terra dos seus tios. Era uma vez uma bordadeira de sonhos, com mania de avião e céu.
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Era uma vez uma mulher perfeita. Desde muito jovem, tinha o trabalho dos sonhos e muito dinheiro - conquistado por esforço e sorte (não há esforço sem sorte, não há sorte sem esforço). Sentia-se, ao mesmo tempo, muito sozinha no mundo, até o dia em que conheceu o amor de sua vida, tão similar e ao mesmo tempo tão distante. A moça perfeita, de longas madeixas loiras queria, do fundo da alma, conhecer um continente distante. Não o fizera por falta de dinheiro, mas por falta de encantamento: não poderia ir só, queria compartilhar o amor que brotava dentro dela quase que como mato com alguém que lhe compartilhasse dos mesmos devaneios, língua e destino. Era uma vez, uma mulher perfeccionista, com mania de excesso de doçura.
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Era uma vez um rapaz. Um dia, esse rapaz encontrou uma mulher que carregava em seu ventre uma semente que não dele, mas quase como se fosse. Acolheu a árvore, o fruto, a doçura do encontro, e dentre todos os citados acima, foi o único que encontrou a felicidade (ele e a criança, que eram a mesma pessoa). Era uma vez, um rapaz que tinha por mania a própria felicidade.
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Era uma vez um pai. Mineiro, de uma cidade do tamanho de um feijãozinho, que saiu em busca do mar.  Saiu em busca do Rio de Janeiro. Por forças das circunstâncias, levado à paulicéia desvairada, casou e teve uma filha. Trabalhou trinta e três anos na mesma firma - metalúrgica. Tornou-se amigo de um ex presidente latino americano: compartilharam uma dose de pinga, e assim celaram um mito de amizade.  Ao aposentar-se, sentiu o vazio daqueles que se aproximam da morte, e foi quando se deu conta de que seu coração não mais lhe pertencia, havendo-o deixado há milhares e milhares de estradas dalí. Era uma vez, um homem que tinha mania de sonhar caladinho: Sonhava, todas as noites, estar nu diante do Cristo Redentor.
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Era uma vez uma bailarininha. Não sabia nem dó e nem ré, mas dançava como ninguém. Quando a bailarina cresceu, e aventurou-se em conhecer o micro mundo de onde pertencia por sangue e alma, trincou o tornozelo e nunca mais pode dançar. Ao mesmo tempo, dançava em todas as circunstâncias possíveis - quando amava e, principalmente, quando odiava. Dançava em seu modo prolixo de falar, em sua falta de habilidade para as coisas cotidianas como aceitar as pessoas como ela são. O que mais queria, no fundo, embora sabendo da impossibilidade das coisas, era ter um cavalo e, desse modo, esquecer por completo o passado que não mais voltaria. Passava horas e horas observando uma imagem - a de São Jorge - imaginando que coragem é coisa que vem de dentro. Era uma vez, uma bailarina com mania de cavalo, São Jorge e covardia.
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Por fim, conheci um rapaz que tinha mania de colecionar árvores. Todas as árvores do universo eram dele, e por assim ser, todo olhar que dirigia para o mundo pertencia àquele verde inofensivo que também o amava. Amaram-se tanto, árvore e menino, que quando este faleceu, todos os eucalíptos, tílias e girassóis, pés de manga, pés de goiaba, pés de moleques - todos sem exceção - choraram por vinte e seis anos. Era uma vez, um menino que poderia chamar-se Francisco, cuja mania era a de se pretender Deus.
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Era uma vez um cachorro. Um cachorro que morava numa casa cheia de normalidade e que um dia, adoeceu. Se não me engano, um câncer de próstata. Debilitado, nunca mais levantara de sua casinha de jornal, nem sequer para cumprimentar seu melhor amigo - o homem que sonhava calado. Certo dia, pressentindo a chegada da morte, levantou-se, com muito sacrifício de sua redoma e, acompanhou até o último degrau da escada aquele senhor, dando-lhe a pata como quem diz " Você é dos meus, Amém". Nunca mais se encontraram, homem e cão, mas o mistério da vida venceu a morte. Era uma vez, então, um cãozinho vira-latas que tinha mania de premonição. 
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Era uma vez uma moça insone. Não dormia porque pensava na eternidade, e assim, prorrogava seu sono pesado para quando não houvesse mais acordar. Era uma moça bonita, mas cujo espelho de si mesma, de retorcido que era, fazia de si às vezes um monstro. Era uma vez, uma moça bonita cuja mania era a de escrever bobagens: prostada em si mesma, escrevia como se fosse água, e para tal, observava as pessoas do fio de cabelo à unha do pé. Era uma vez uma moça bonita (ou não tão bonita) que sonhava enxergar a alma de todas as pessoas do mundo; tinha a mania de labirinto - pobre moça desatinada.
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Era uma vez um gato que não tinha passado. E por isso, não tinha mania de nada.
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Era uma vez uma italiana que tinha medo do escuro. Tornou-se freira, aos dezessete. Era uma vez uma freira com mania de acender todas as luzes do corredor, antes do último despertar. 
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Era uma vez uma criança que ouvia uma canção, obsecadamente. Um dia, quase mulher, descobriu o nome da música da sua vida. Era uma vez, então, uma pseudo mulher com mania de  Asturias de Albeniz.

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