domingo, 6 de maio de 2012

O Gato e o cachimbo

Estava no mesmo café. Perto de mim, havia um homem calvo que, enquanto observava os passantes daquela avenida principal, tirava da maleta um cachimbo. Notei que era estrangeiro. Curiosos olhos azuis fitavam a vida daquela gente e o provinciano vai e vem de cores e recatos. O exalar da fumaça fazia com que dele se aproximassem toda estirpe de gente e animal: alcoolatras, loucos, crianças e um pequeno gato. Enquanto o observava, lembrei-me de um conto.
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Havia uma mulher que detestava gatos. Não era ódio ou asco, senão um medo agudo, desses que nos acompanham desde a infância. Por onde andava, evitava instintivamente o contato com o animal que, a seu ver, assemelhava-se aos demônios medievais pelo tamanho, aspecto e olhar. Cheios de si, gatos não constróem laços, vivendo alheios  a qualquer convenção ou lei. De forma libidinosa, manipulam seus donos e se apropriam do espaço onde se encontram sem construir laços de afeto duradouros. Pequenos demônios, leem a mente humana e antevem a morte.
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Certo dia, encontraram-se gato e mulher. Passaram horas se observando, até que sentiu - a mulher - o estranho e inexplicável desejo de possuí-lo. Levou-o para casa e fez do mesquinho animal dono de sua vida, única companhia que manteria perto de si. Confidente, amante, vício, com passar dos anos, uma estranha simbiose fez com que gato e mulher se tornassem o mesmo ser, de modo que o medo antes sentido converteu-se em espécie de possessão e encantamento: sozinha, a mulher passou a desenvolver os mesmos hábitos que o animal.
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Todos os homens que a cercavam transformaram-se em presas que necessitavam de salvação, uma salvação que só tal mulher poderia consentir. Resignados, aqueles homens - aparentemente tão fortes - entregavam-se à mulher-felina, que deles extraía todo o desejo e libido que lhe fosse conveniente. Enfeitiçava-os gradativamente, buscando em cada encontro a satisfação de um capricho que até então lhe era oculto, latente. De suas mãos saltavam garras vermelhas e hostis, de seu corpo emanava um selvageirismo dócil e interessado, de sua boca, grunhidos e verbos nunca antes proferidos. Em cada movimento, seu corpo expressava a necessidade do encontro, de tornar o mundo alheio seu, fazer com que o universo das vontades humanas sucumbisse a sua capacidade de sedução. Mirava-os todos como a quem mira um pedaço de ser, benevolente e submisso. Não era mais senhora de si, tornando-se prisioneira de uma constante solidão: aliciava um exército de homens para recuperar uma juventude que lhe escapava a cada dia. Em cada conquista, uma nova chance de paralisar o tempo e antever a morte.
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Porque aquilo que se ojeriza - ou secretamente se teme - é parte mais intima daquilo que somos, como metade perdida ou esquecida pelo labirinto da razão.
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Guardou o cachimbo na maleta e cumprimentou-me ao longe. Temia não mais retornar aquele céu de onde emergiram as imagens que lhe conceberam: uma Alemanha perdida e eternamente amada. Vestiu-se com o velho chapéu, sorriu para o senhor de cor negra - o mesmo que entoava uma estranha canção. Fez-nos um sinal e partiu, levando consigo um fardo de medos. Dobrou a esquina e desapareceu de nossas vistas, como se nunca nos houvera existido.
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Um comentário:

  1. Muito bom. Fazia um tempo que eu não lia nenhum post seu Amanda e mais uma vez, não me decepcionei na feliz escolha deste texto. Intrigante e muito reflexivo. Como sempre, um texto para nos deleitarmos ao ler.

    Beijo

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