quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Contrato

*Guarda-chuva. Diogenes Freitas
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Admiro al hombre que permanece fiel a su conciencia, cualquier cosa que ésta le inspire.
(Luis Buñuel)
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Cercávamos-nos na maior cobertura do maior shopping da América Latina, desses que nunca poderão ser reproduzidos em Europa ou  Oriente, devido à magistralidade, óbvio. Eu também vi. É que chovia e chovia, uma chuva que nos flagra nos dias bons ou ruins, chuva infinda, das que te fazem o homem mais bruto da avenida embora sejas em verdade o mais temperado - quando em casa, com tua esposa, em tua cama. Quanto a mim, problema algum lá havia: nasci chuvosa e possivelmente hei de morrer assim; portanto, aproveito o que - aparentemente perdido, tempo - para observar as reações e olhares dos passantes quando se deparam com o infortúnio e infausto imprevisto da perda de hora ou dia inteirinho. Agrada-me a desgraça, desde que suficientemente controlada: é como assistir a um tropeço alheio. Há sensação melhor? A consciência de que nascer já é por si só um imprevisto: afortunado tropeço casual. Vulpt! Nascemos!
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Observei séries de pessoas, classificando-as em minha tabela mental: mulheres feias, mulheres bonitas, homens feios, homens bonitos; gente branca, negra, parda, azul, rosa, marrom; estrangeiros, minhocas; ricos, pobres; crianças, idosos; anões; fleumáticos, sanguíneos, melancólicos (a colérica sou eu); ex presidiários, ex miss; mãe, pai, irmão, amante, secretária, chefe, estudante, auxiliar de pedreiro, padeiro, católicos, protestantes, espíritas, mórmons, ateus, panteístas, especiais, pervertidos sexuais, astígmatas, míopes (ambos sou eu). Todos  em guarda-chuvas, sombrinhas, umbrellas, paraguas de todas as cores possíveis - até verde abacate. Uma moça trazia consigo uma sombrinha amarela tão generosamente ampla que me causou inveja (embora a que tenho proteja-me da radiação ultra-violeta, o que aumentou minha auto estima desinvejandome no mesmo instante).
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A vida é besta. Olhamos por cima de nossos narizes - não cabendo aqui a discussão sobre formatos e narinas- mas não olhamos para baixo. Sou bailarina clássica: um pouco gorda, um pouco velha, um pouco triste, um pouco aposentada - mas bailo. A  disciplina de que tanto falam sempre me faltou; mas há algo místico que me trouxe a dança clássica e o compartilho como segredo de gerações ou dom especial. Ao observar o que está a minha frente, consigo simultaneamente conectar-me a tudo ao redor, sem que  se deem conta. É como um flerte: finjo observar a parede branca; contudo, fixo-me no elegante homem ao lado, o de camisa vermelha ou o de xadrez ou tanto faz ou ambos ao mesmo tempo. Minha percepção é contínua e discreta, quase como a de um caçador (ou será a da presa? confundi-me). Bem, o fato é que o Ballet Clássico me trouxe tal presente: o fingimento do olhar.
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O bom bailarino deve, vez ou outra, mirar a baixo, isto é, para os próprios pés, mantendo-os em en dehors. Esqueci-me, hoje, desse detalhe imprescindível. Porque  os pés são a base de tudo, a base da vida....(eis o meu fetiche por tropeços). 
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Não me dei conta do cão que estava, tão pequenino, abaixo de mim, cerca do meu pé esquerdo, cheirando-me como se fosse eu algo a ser comido literalmente. De repente, encaramos-nos: cão e eu. Sorri-lhe; nada respondeu o cão, por visto não queria afago, senão comida mesmo - a que não tinha, pois compartilhávamos da mesma fome. 
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Estávamos todos por de baixo da cobertura do shopping. Alguns temendo atravessar a rua; outros, o toque da água-chuva. Eu esperava o ônibus que nunca vem, ônibus fantasma. Juntos, coloridos e medrosos - a raça dos homens bobos. O cão? Este deu um corajoso passo a frente. Olhou para a direita. Olhou para a esquerda. Atravessou a rua elegantemente, aproximando-se da padaria. Não encontrou o que buscava, porém não pestanejou: continuou caminhando enquanto chovia (e sem tropeços!) até encontrar nada. 
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Não foi , o cão, vitorioso na empreitada por comida e , por fim, míope e astígmata que sou, perdi-lhe de vista para sempre. O curioso, e novamente óbvio, é que foi o único exemplar de raça humana que seguiu, apesar do contratempo. Cachorro não usa relógio e por isso vive menos - porém é mais feliz.
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Todos os cães têm um contrato com a felicidade. Dispensam cerimônias e, se tropeçam, aproveitam a oportunidade para rolar no chão ou lamber os próprios genitais. Não perdem tempo com futilidades.
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Nunca saberei se meu amante-cão encontrou ou não o que buscava. Mas atravessou a rua com tamanha docilidade, ou melhor, bailarinidade, que pensei "preciso imortalizá-lo, porque foi herói". Sem sombrinhas, umbrellas, paraguas, capas horrendas de chuva. Simplesmente, fez o que todos nós devíamos ter feito:
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Analisar as possibilidades e, havendo poucas, seguir-seguir-seguir-seguir-seguir.
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