sábado, 4 de dezembro de 2010

Minha avó Maria (In Memorian): vermelha e verde.

*Lápis de côr. Foto de Ricardo Lucas.
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Ontem comprei duas caixas de lápis de cor.
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Gosto de cores fortes: vermelho e verde, atualmente, são minhas favoritas (antes gostava de azul; ainda antes, rosa....). Cada nova cor é como nova fase que se inicia; hoje sou uma Amanda bipartida: transitoriamente coletiva, sem caminho único: escolhas e pensamentos, bons e ruins.
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Minha avó materna se chamava Maria, e ela era dupla como minhas cores atuais.
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Dona Maria, como todos a chamavam, exceto eu que naquela época a chamava de vovó, morava no velho Tombo da Cachoeira, onde passei boa parte da minha infância. Quase metade dos meus primeiros anos; depois, férias, diários, pensamentos, cartas e cartões de aniversário. A cada ano, um novo cartão e vontade de palavra nova, para que fosse transformada em pedaço eterno de papel.
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Eu a amava pelo que era e por tudo o que pude conhecer através de suas mãos sempre férteis. Meu avô falecera quando minha avó e mãe tinham apenas 34 e 14 anos respectivamente. Meus outros sete tios não passavam de crianças, todos pobres e à margem dos cuidados de meu bisavô, um homem de muitas posses. Dona Maria não só criou os seis filhos (dois faleceram ainda crianças) praticamente sozinha, ou melhor, com a ajuda de alguns amigos - visto que a família de seu marido não lhe ofereceu, na época, o apoio necessário - mas, também, fez com que cada um de meus tios construísse seu pequeno império particular.
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Minha família tem em sua genética muito ódio e rancor dessa ciranda que é a vida: naturalmente briguentos por mesquinharias, a luta pela sobrevivência fez com que aquela gente se tornasse ainda mais triste em muitos sentidos... família enraízada, à procura de terra pra servir de semente de não-sei-quê. Mesmo assim, Dona Maria se eternizou porque fez grande e forte o que podia ter morrido pequeno e opaco.
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Para mim, no entanto, ela não passava de um senhor de calças e boné, quem me presenteava com lápis de cor, cadernos, doce de figo e almanaques esotéricos (ela também gostava de Tarot).
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Eu a via como um avô. Ao longo da minha infância e adolescência, nunca um bordado ou uma toalha de tricô: ela era a manhã que nascia, o leite que buscava, o queijo que fazia e vendia, a semente que plantava e o alimento que colhia; o pasto, as criações, o chupi-chupi do domingo de futebol, o futebol, o cavalo, a charrete, o terreiro, os netos, o trabalho árduo, a missa e a vela, o presérpio, o Natal, a macarronada, as flores que Cleiton e eu comíamos, a antiga venda e a velha casa que construíra.
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Ela usava calças e trabalhava como homem (desculpem-me as feministas, mas era assim antigamente): tinha um riso engraçado e humor sarcástico que na época eu não entendia. Sofreu muito, como tudo o que é bom e fértil.
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Dona Maria me mimava, como faria um avô. Não me dava colo nem longos abraços, mas gostava de conversar comigo e rir de coisas simples e profanas. Quando trabalhava como servente no grupo escolar, a cada ano me dava cadernos e caixas de lápis de cor que eram a melhor coisa da minha vida. Nunca gostei de desenhar ou colorir; gostava mesmo era do cheiro que o lápis tinha...a cor diante dos meus olhos...a vontade de escrever nos caderninhos, apenas por observar a cor do lápis.
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No natal, a família toda se reunia. Quando acordava, havia um presente a minha espera, até um dia em que ela me disse, friamente:
- Amanda, você sabe o nome do seu Papai Noel? É Raimundo!
Mas...Raimundo é o nome do meu pai! Não podia ser!! (Naquele dia, chorei).
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Aos poucos, o Natal ficou miúdeza: eu assistia à briga dos meus tios diante da mesa de macarronada e frango. Tardes depois, cada um seguiu um rumo e nunca mais se falaram. Minha família tem um pouco de ódio e rancor no coração, típico de pessoas muito ligadas à terra. Muito tempo depois, vovó Maria se mudou para São Miguel do Anta, abandonando parte da minha memória: foi de vingança, porque ela era um avô, forte e dotada de uma fertilidade às vezes seca. Deixei as lembranças e fui com ela, já adolescente.
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Nesta época, ela pra mim já não era vovó; somente vó. Ainda a amava muito, mas já era grande suficiente para entender aquele humor sarcástico que fazia graça, a mim e a meu pai.
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Meu pai foi o melhor genro que ela podia ter, e o filho que ela mais amou.
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Um dia, vó e eu brigamos para nunca mais. Queria ficar um mês na sua casa, para poder visitar um rapaz por quem estava apaixonadíssima; este, doente, leucêmico, faleceu sem que pudesse me despedir dele, porque minha avó não permitiu que eu passasse aquele resto de tempo, que eu queria, junto consigo. "Você tem que seguir seus pais".
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Após esse incidente, nutri por ela um ódio profundo. Via-me não mais como a neta querida, mimada, amada, mas como qualquer um que ela tinha por obrigação e não gosto. Sofri muito durante muito tempo, pensando que ela não mais me amasse, ou nunca o houvesse feito.
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Com o passar do tempo, voltei a frequentar sua casa, nunca mais só: sempre com meus pais, primos, ou ex namorados. Depois que meu primo-irmão também falecera, sua nova casa, em São Miguel, tornou-se para mim um grande incômodo e peso. Tudo me lembrava o Cleiton...todo o riso, janelas, fugas, "ficantes", aromas, gostos....não gostava de visitá-la.
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Como num romance, não sei porquê, tempos depois ela resolveu me contar sua história. O quanto sofrera por causa dos homens de sua vida: marido, sogro, filhos, pai. Quando meu avô faleceu, o pai de Dona Maria, meu outro bisavô, proibiu que ela voltasse para a casa dos pais, alegando que sua obrigação, como mulher, era a de viver com a família do esposo, ainda que não fosse tão bem quista: "Você tem que seguir o rastro do seu marido". Também me contou que voltou a se apaixonar e que sentia vontade de casar novamente, mas que foi proibida pelos filhos mais novos "...A senhora tem que seguir os seus filhos". Por fim, perdoei o que não necessitava de perdão.
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Quando mudei-me para Viçosa, com meus pais, voltei a frequentar normalmente sua casa. Passei todos os Natais da minha vida junto dela, mesmo quando o Natal já não fazia sentido...Cleiton já não estava conosco, meus tios todos dispersos....mas, ainda assim, havia macarronada e um pouco de riso.
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Nos últimos anos, ela passou a me abraçar forte, o que eu achava estranho. Colocou muitas fotos minhas nos seus porta retratos, e ligava para minha mãe diariamente. Com a correria da minha vida, mal conversávamos...mas não havia mágoas: minha avó era aquilo que era, bipartida, verde e vermelha, como as pessoas boas do mundo.
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Quando morreu, sábado passado, visitei-a no hospital. Estava pequenininha, do tamanho de uma mulherzinha de saia, tricô e toalha de mesa: Cadê minha avó? - pensei. Senti medo, mas o medo passou quando fui ter com meus priminhos, meus atuais amores.
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Passei o dia brincando com eles; depois, fui dar aula; após a aula, recebo a notícia de seu falecimento.
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Não me despedi.
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Ao vê-la saindo do carro de meu pai, para o hospital de Viçosa, para onde a trouxemos, ela já estava bem disposta e não me parecia que morreria, assim, como uma senhora frágil que nunca fora. Não disse nada. Não disse se quer "tchau". Olhei para ela e pensei "...vaso ruim não quebra". Automaticamente, senti os cheiros daqueles velhos lápis de cor, os quais nunca esqueci.
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Ontem comprei duas caixas de lápis de cor.
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Era formatura do Miltinho, meu primo e afilhado de 5 anos! Quis que ele sentisse o gosto. Também comprei uma caixinha para Marcela, sua irmazinha de 6 anos: comprei adesivos e cadernos para ambos.
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Roubei os cartões de Natal que minha avó recebera ao longo da vida e alguns esboços de carta (uma delas pra mim, inclusive). Coloquei-os numa caixinha velha que era dela e que sempre gostei. Trouxe-a pra mim.
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Estou profundamente triste. É como se tivesse perdido minha memória, minha raíz; ao mesmo tempo, sua morte parece um milagre...só o especial e fértil é passível de morte.
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Eu amo minha avó. Dona Maria ensinou-me que pessoas boas são verde e vermelhas, bipartidas; e que quando se ama, o perdão é simples, pequeno...
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...Sem cerimônias...declarações....ceias e celebrações natalinas: apenas a macarronada sobre a mesa, o riso sarcástico, o silêncio - e as cores dos lápis que se eternizam.


Maria Lelis Acipreste (a de verde):
27/7/1933 - 27/11/2010.

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