segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Amor


*Bondinho. Foto de Aleximan Thiengo Zegarra.
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"...Hey,that´s no way to say goodbye..."
(Leonard Cohen)
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Faltava direção a sua vida. Dificilmente distinguia as ruas por onde passava, vivia num mundo paralelo em que a uniformidade dos passos, bondes e desejos desembocava para o mesmo lugar. Não prestava muita atenção ao espaço, preocupava-se por demais com a complexidade do tempo, interno, não enxergava as cores - talvez sofresse de daltonismo congênito, ainda não se conhecia plenamente. Pensou, por um instante, em tomar aulas de direção, havia um pouco de dinheiro guardado, era o momento certo para ultrapassar o medo das coisas.
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Gostava de pessoas e costumes. Passou a observar a avó com mais afinco ao descobrir a doença que lhe acometia, Alzheimer, uma ode à memória. Para ambas, iniciava-se o milagre: depois de tantas perdas, a possibilidade do esquecimento natural da vida, do que já não existia, era sinal de compaixão. Mirava-a com excesso de amor, todas as noites, na expectativa pelo instante em que seu nome, assim como os dos outros netos, tornar-se-ia pó.
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Era orgulhosa e má. Poucos sabiam dessa verdade, poucos a haviam despido até a revelação de que, no fundo, sua humildade era mesmo egoísmo ao avesso. Sentia-se diferente, tinha conhecimento de sua fortuna, mas optava por reduzi-la ainda mais para anular-se. Buscava inconscientemente o sofrimento por medo da vida autêntica, das pessoas autênticas, das ruas autênticas: conformava-se, sempre, com o último lugar, por não suportar o peso das frustrações necessárias, aquelas que levam a certa felicidade.
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Limitava-se por preguiça. Uma vez, quando pensou em ir mas não foi, desistiu de todos os outros encontros. Passou metade da vida à espera de um milagre, qualquer coisa que a mantivesse suficientemente inebriada, até o encontro com a realidade. Era feliz junto do outro, quando se deparava com o encantamento alheio; porém, em si mesma esvaziava-se de qualquer companhia, buscava a solidão como circunstância, permanecendo sempre no mesmo lugar.
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Nascera culpada.
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Ainda assim, sentia-se admirada sem entender o porquê. Conquistava sem dificuldade o carinho das pessoas, penetrava na vida do outro por acidente, mas permanecia por gosto, criando vínculos reais e duradouros, como se seu nome incitasse espécies de amor que ela mesmo não percebia, não sentia. Fazia-o por casualidade: a vida a chamava muitas vezes, ela preferia não estar lá, mas com a mesma distração com que caminhava pelas ruas, encontrava, quase sem querer, as pessoas certas nos momentos igualmente certos.
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Tinha a coragem dos tolos. Sobre o fogo, prostrava suas mãos sem sentir menor sinal de dor. Tinha uma confiança secreta, em si mesma e na vida, confiança que lhe atraía para as situações mais difíceis com uma frequência natural. Orgulhava-se disso, sem perceber, contudo, a funcionalidade de tamanha sorte, sorte que a conduziu por lugares que nunca teria conseguido chegar sozinha. Como lhe disseram certa vez, fora escolhida tantas vezes para acompanhar os que amava para o além morte devido ao conforto e serenidade que também é quando mente.
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Mas não sabia mentir bem. Irritava-se ao ter que fazê-lo, torturando-se. Secretamente, acreditava que sua vida daria um romance ou um pequeno conto...(enfadonho, que ela mesma escreveria ao não ter mais soluções).
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Gostava da sua companhia, das horas imperceptíveis que passava ao seu lado. Gostava do seu jeito de rir, do seu olhar, da sua voz, do modo narcíseo com que ajeitava o cabelo; gostava da chatice e insegurança dele, nas quais ela se reconhecia (ainda que num grau maior). Eram essencialmente diferentes, mas conectavam-se com facilidade, como que por mistério. Talvez ela o amasse, talvez ele a amasse - de um modo estranho e inclassificável. Talvez ele não a amasse, talvez ela houvesse sido um de tantos outros caprichos que ainda o esperam. Talvez ela o odeie.
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Nesta manhã, pretendeu um súbito Alzheimer; não tentou, apenas esqueceu. Atravessou a rua olhando para os lados, buscando uma direção já conhecida. Despencou novamente do sétimo andar. Sentiu-se feliz por estar viva, comprou uma caneta e recomeçou.

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