sábado, 15 de junho de 2013

O colecionador de lanternas

*Domínio público.

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Havia um homem muito doce que colecionava lanternas. Não importavam marcas, tamanhos, preços,cores, funções, aparatos, se velhas ou novas, se rústicas ou modernas. Colecionava-as sem saber por que razão, mas, como por fetiche, mantinha-nas todas numa gaveta secreta, fechada a sete chaves. Vez ou outra, aparecia com alguma novidade a vista dos que dividiam consigo o mesmo ar e matéria, nunca entendemos muito bem qual graça havia em uma lanterna cuja luz, artificial, mais cega que ilumina.
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Este homem caduco gostava de contar histórias infinitas e casos de carochinha. Diz que tem sete vidas e quase já perdeu algumas: quando criança, uma rara infecção; quando adolescente, quase se afogara no rio da cidadezinha onde nascera; já adulto, três ou cinco assaltos, uma queda do telhado, um sequestro relâmpago, uma arritmia congênita, um quase derrame, um acidente de carro e uma laparotomia mal sucedida. 
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Trata-se de um homem engraçado, apesar da cara feia - cara de fome. Diz que encomendava almas junto da avó, mulher de letras que desde cedo o ensinara o segredo do grande drible, o drible triunfal: como escapar da morte. Saiu de casa muito cedo e foi morar numa pensão aos doze anos, onde aprofundou-se nos estudos. Aos dezoito, arriscou a vida na cidade maravilhosa. "Dois anos e três meses" - repete com orgulho, como se neste espaço temporal sua vida houvesse ganhado cor local nunca antes encontrada nas cachoeiras de seu verdadeiro lar. Lar é segredo de alma.
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Uma viagem a São Paulo que lhe mudaria a vida. Pacto com Deus ou Diabo? Ainda se pergunta. Trinta anos trabalhado como metalúrgico, na mesma firma, o que lhe rendeu uma aposentadoria precoce aos quarenta e seis. Entre coisa e outra, o casamento com a moça mais bonita - também mineira; o nascimento da filha única, misto de ovelha negra com menina dos olhos. Cinco cães que lhe foram como anjos neste caminho perplexo do viver. Viagens ao redor de si, viagens a Colômbia, Rondônia, Mato Grosso, Minas Gerais, Espírito Santo, Brasília, interior de espírito. Final de semana era sinônimo de churrasco com os amigos-mais violão-mais músicas da jovem guarda. A criança, que nada entendia, não queria mais colo e sim brincar eternamente com os filhos dos amigos do pai. As viagens à praia grande, as viagens ao Tombo da Cachoeira ao encontro da sogra, cunhados, sobrinhos e do menino que nasceu raiz. 
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Interessava-se pelo mundo exterior, sem que nunca houvesse caminhado tão longe: estudou informática, manutenção de computadores, trabalhou com marketing de rede, estuda matemática e inglês diariamente, embora só assista a filmes dublados. Se teve "casos" não sei, mas foi de chamar olhares pra si, olhares alheios. A esposa ciumenta guardava-se numa caixinha de música; a filha, no entanto, era a porta voz das dores femininas. 
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Tinha tantos amigos e era querido por saber amar e amar bem. Mudou-se para o interior de Minas ao se aposentar e nunca mais foi o mesmo. Custou acostumar-se com a desconfiança mineira, ainda que sendo um deles "Mineiro é bicho traíra, bom mesmo é carioca". Acostumou-se à cidade indo e vindo de um pequeno sítio que vendeu logo após a morte de Sheik, o cão mais amado. Buscou consolo nos poucos amigos: os cunhados que lhe amam como irmãos e um ou dois senhores sexagenários, mas de humor bem vivo; um jovem cientista, um cabeleireiro, as amigas da filha e os irmãos. Perdeu um deles recentemente mas engoliu o choro. Se abríssemos seu coração, haveria ali milhares de gotas mal derramadas luzindo como lanternas em miniatura.
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Queria uma menina, mas aí veio o milagre: nasceu uma boneca com alma de moleque mal criado. Não vai à manicure, é briguenta como ela só. Não sabe fazer tantas coisas quanto o resto de seus sobrinhos - casados, pais, mães, escritores, jornalistas, cientistas, criadores de aquecedor solar, banqueiros. Uma menina que passa os dias à procura de palavrinhas para comê-las todas resignando-se a um mundo interior. De certa forma, ele a conhece muito bem e percebe a dor que ali habita, na menina, quando perdeu o único irmão. Ficou gaga para sempre e hoje só escreve com penas invisíveis. 
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Sexagenário teimoso que prefere morrer a serenar. Quem de nós errará desta vez, Raimundo? Quem de nós acertará?
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Quando tu ficares bom, meu pai, dou-te o Rio de Janeiro inteirinho; o Pará e  o Rondônia também. Um neto, um microondas, uma boina xadrez e a lanterna mais linda.
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15/06/2013

4 comentários:

  1. Ah que fofo! Teu pai sempre cheio de aventuras! E eu que sempre quis ter uma lanterna, mas a que tive não prestava e logo estragou :/

    Me identifiquei mto contigo nas partes "Não vai à manicure (costumo só lixar as unhas, eu mesma)[...] Não sabe fazer tantas coisas quanto o resto de seus sobrinhos - casados, pais, mães, escritores, jornalistas, cientistas, criadores de aquecedores solares, banqueiros (principalmente a parte de casados - de todos os primos e primas, eu sou uma das 3 solteironas...rs)[...] Uma menina que passa os dias à procura de palavrinhas para comê-las todas resignando-se a um mundo interior"

    E também amo mto meu fofo sexagenário pai :)

    Amei a postagem ;)

    Abraços da Flor~*

    bipo-analisando.blogspot.com.br

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    1. Moça! Obrigada por comentar, hoje estava carente de comentários. Ano passado ele fez uma laparotomia que de mal sucedida resultou em infecção generalizada. Um pesadelo Oito meses usando bolsa de colostomia. Estamos essa semana em Caratinga (porque o médico dele de Contagem atende aqui tbm) e ele fará a reversão definitiva de colostomia nesta segunda, mas há sempre o risco de que se rompa a anastomose (extremidades do intestino grosso) de novo. Ele ta com uma infecçãozinha na urina, a medica o aconselhou a esperar mas ele é irredutivel. Daí brigamos, porque ele - que não é o bipolar da relação, mas é como se fosse - diz que não quero ve-lo curado bla bla bla. Estou muito mal hoje....Obrigada pelo carinho!

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    2. Ô Sofia! Que bom que ajudei :) Tb tô carente de comentários...rs

      Sei como é difícil ver o pai doente. Meu pai teve Mieloma Múltiplo (um câncer que corrói os ossos). Foran dois anos de mta luta, ele chegou a fazer um auto-transplante de medula, ficou vários meses tento q ter o maior cuidado com tudo, esterilizar tudo mesmo. Minha mãe com a coluna ruim, sobrou pra mim fazer os curativos dele. Graças a Deus passou e ele está curado. Pode voltar, mas eu prefiro viver o hj :)

      Homens são teimosos mesmo, ainda mais com essa idade! rs
      Vou fazer o que posso por ele, vou orar pela saúde, que Deus cure ele e não tenha complicações.
      Força menina! Vc consegue! :D

      bjs

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