sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Outubro.



*Moimento. Fabrícia Pedrini.

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Hoje fui pega de jeito pela tristeza e não tive pra onde correr. A única solução foi absovê-la até o instante da sua tardia decomposição, que ainda não me veio. Às vezes, o melhor remédio contra as dores agudas é uma capsula placebo de inveja - inveja daquilo que não se pode ter, ou, ainda, poderiamos ter se não ardesse tanto.
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Gosto muito do movimento das pessoas, o ordiário ir - vir, perder -vencer, acordar -dormir-sonhar-acordar. A impressão que tenho é a de que todo ser vivo tem dentro de si uma capsula de inveja, a qual, placebo em si mesma, não é inveja concreta, doentia, mas sim, movimento mudo que se manifesta ante a terrível mania humana da comparação.
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Um dia, vi uma moça na rua com um vestido vermelho e desejei, naquela fração de segundos, ardentemente que ele fosse meu, porque ficaria bem melhor em mim, que sou mais escura - talvez morena, talvez parda, certamente negra.
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Meses se passaram, comprei livros, comprei uma estrante, comprei presentes, paguei umas coisas, comprei minha sanidade - duas vezes ainda esse mês - comprei meu esquecimento - talvez quatro vezes desde a semana passada. Foi quando percebi que o vestido vermelho, cuja cor combinava com meus olhos, pele, cabelo, nem se quer existia; eu o inventei, como a maioria das coisas que amo.
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A angústia causada pela miragem do vestido vermelho, talvez com flores brancas, talvez nulo, fez surgir secretamente uma vontade de comprá-lo, torná-lo parte do meu guarda-roupas; fazer de mim um pedaço inabitual de vaidade e necessidade. Não é possível sobreviver nesse mundo avesso sem o mínimo de vaidade; é por isso que existem os vestidos de todas as cores, todas estampas - para serem roubados mentalmente por aqueles que não teriam coragem de usá-los em dias sem festa.
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Lembro-me das flores brancas que combinavam com os aderessos usados pela moça - também branca e de cabelos longos, talvez pretos. Imaginei como seria estranho se nos deparassemos numa esquina qualquer, ambas usando o mesmo traje de gala em dias sem festa.
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Meu cabelo parece preto, mas é castanho, profundamente escuro.
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Libertei-a de meus devaneios e prossegui meu caminho sozinha, em busca de um pouco de azul, a cor das paredes desse quarto que já não é meu - há um movimento conduzindo-o para o vermelho e branco...(cores do vestido daquela mulher que poderia ser eu, mas não é).
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Levantei-me da cama, depois de horas afinco de choro sem lágrima, e me propus a pensar em qualquer coisa que não fosse uma viagem de trem. O mês de outubro traz em si uma carga muito forte de afeto e será preciso que eu esteja um pouco mais bela, antes do derradeiro início dos dias importantíssimos: dia 4, dia 6, dia 13, dia 16, dia 18, dia 20, dia 22...todos os dias desse mês que precedem os dias do meu nascimento.
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Mas será possível nascer tantas vezes? Não sei...o movimento nascer-morrer-nacer já não é milagre, não é surpresa; diário e desconfortável, como um vagão cheio de desconhecidos, exceto pela mulher de vestido vermelho (e flores brancas, não se esqueçam...flores brancas que a distinguem de todas as outras da sua classe e condição social...as flores brancas).
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Eu só queria esquecê-la, antes que me apaixone novamente por ela, sendo então trocada por tal mulher que não passa de mim mesma, quando em avesso.
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Sim, eu seria tranquilamente aquela mulher, aquele vestido, aquele vermelho de cor.
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O único obstáculo que nos separa eternamente, mulher-vestido-eu, é o branco das flores que leva consigo. A mim foi designado o amarelo, somente; flor que nasce em novembro, mas perdura ao longo de todo ano, movimentando-se de acordo com o desejo do sol, obscuro enigma de luz e inveja.
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Há um vestido vermelho com flores brancas à espera de quem o possa roubar.

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