quinta-feira, 3 de março de 2011

Sobre coisas penosas e admiráveis.

* Picasso.
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Olhou pra mim firmemente exigindo que estievsse lá às 14:00, não à "meia", como o perguntei se poderia! A ele era dada voz e vez, disse-me num tom exageradamente hostil, naquele corredor adorável e infindo, repleto de janelas humanas, onde desejei me perder mais uma vez.
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Uma lágrima nasce, da combinação vergonha e orgulho, mas não cai. Talvez porque no fundo ele tenha mesmo razão; ou, ainda, porque aprendi a disfarçar a minha falta de jeito com coisas penosas e admiráveis, profundamente - tais como ele.
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- Ai desculpe... - disse Alice, pequenininha formiguinha filhoti-ta.
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Mesmo assim, meu abismo interior perdurou de tão vexatório, que me dei inclusive ao luxo de permanecer naquele corredor, relicário-corredor, totalmente imersa, integra, física, intocávelvemente estável e forte. O fato é que enquanto ouvia com atenção os devaneios de uma amiga, gastava moléculas e sais decompondo-me pouco a pouco, sem que doces ou disses pudessem sequer imaginar o tamanho da minha fuga.
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É assim, quase diariamente, quando chego em casa e me dou conta de que não sou a mesma. De que não sou tão pouco diferente, mas sim um pedaço de célula à espera do dia 9 de março, quando a vida recomeça no meu reino.
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Antes disso, entre o preâmbulo e o carnavalesco, entre o relatório incompletíssimo e as pedras e ouros, pretos e morenos, eu seco. Não aos filmes, não aos dramas, não ao ódio interior, não à saudade, não ao excesso de riso - todas as lágrimas ocultas rezam não, secando como um fiapinho de indigente.
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Alieno-me. Quase não como ou sinto o sabor da comida - o que dá no mesmo. Não é tristeza, soube a formiga; é uma secura tão grande que me desfaço em prantos de nada. Absolutamente nada. Ausente e graniza formiga sem cigarra.
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Cheguei às nove, hoje, para não me atrasar. Ele não pode me atender, como às vezes faz. Nada me passa pela mente: nenhuma reação de ódio ou orgulho - até porque, ainda não estava pronto, ainda não está - e o amor, esse que se revela nas pequenas coisas, mesmo nas penosas e admiráveis, brilhantemente admiráveis e penosas, permanece o mesmo pra com ele, encantadora cigarra.
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Queria tanto não ser eu! Queria ser uma cigarra, mesmo uma cigarrinha muda, apenas para não ter que caminhar entre distâncias tão longas e incertas. Vão me esmagar, sinto! Morrerei no meio do caminho, apesar da minha deslumbrante voz, emudecida pelas folhinhas que carrego debaixo da casta de ombreiras sem asas.
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Sou uma formiguinha que não pode nem sequer fumar um cigarrinho, por causa de uma doencinha periodontal. Mas a vontade é maior de que meu saco infrabucal, o que me leva ansiosamente à espera do dia 9, o de março, quando tudo recomeçarei, tudinho.
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Há alguns dias, entrei naquela fila, também com o orgulho e o coração na mão. Era no mesmo corredor, o admirável e infindo, mas n'outra direção. Rezei para não encontrar ninguém que me perguntasse o porquê de lá estar. A resposta era óbvia e sem escasso de maldade, mas o orgulho da formiguinha é tão grande quanto a naturalidade das coisas.
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Encontro, por azar ou sorte, outra cigarra.
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- Vai também?
- Vou também, se ainda houver vagas...
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Fui também, vou também, menos mau, menos ruim. Conheci uma formiga linda na fila, menos mau, menos ruim.
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Enquanto tudo se move, seca o dia, seca a tarde, chega a noite, às vezes seca, às vezes sonâmbula, trêmula. Dúvida, remorso, rancor, saudade, bituca, fome, destinatório, pedra, ouro, preto, moreno, morte. Sonambulismo crônico o dessa formiga, sem quinhão de paz ou fogo, sem janela humana: apenas o corredor admirável e infindo, cheio de nós por todas as pontas. E as folhinhas verdes...por debaixo da casta de ombreira, sem asa.
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A cada meia hora, observo o passado registrável. É o instante em que o seco se faz mole, dependente, sereno - sem orgulho ou ódio, como todas as coisas penosas e admiráveis. Mas não se enxerga mais, lá ou aqui, vestígio qualquer de canto ou lembrança soturna.
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Junto-me às cigarras para esquecer.

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