segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Céu rezado

*Baixo Mondego - Milagres. Foto de Bruno Raposo.
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...A chama da vela que reza
Direto com santo conversa

Ele te ajuda te escuta

Num canto colada no chão mas sombras mexem

Pedidos e preces viram cera quente

Pedidos e preces viram cera quente

(Reza Vela - Rappa)


Mire.
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Voltar-se contra sistemas nem sempre é fácil. Vejam só o meu caso, querido leitor: brasileira que odeia calor e tem alergia a sol. Gosto de sol, mas odeio as consequências dos dias absurdamente ensolarados e quentes: "crostas" de feridas nas mãos e no colo. Que fazer? Mudar-me para a Europa? Ideia que não me é ruim, apesar de amar a aspereza e o brilho do meu país. Antes de mudanças continentais, mais sensato é gastar uma dinheirama com protetor solar e remédios à base de corticoides: óculos escuros e sombrinha cor-de-rosa, clássica por assim ser. Há algumas semanas, fui chamada de "Sinhá Moça" - sombrinha e eu - pelo meu pai. Ao sair com minha prima-pré adolescente, a vergonha instaurou-se naquele cabelo tão vermelho (cor de sangue...): "Mas o sol já se foi"; "eu sei, mas são os raios Ultra violetas...."

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O essencial é invisível aos olhos.

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O tema é bastante pessoal, desagradável a certos leitores, mas eis o expurgar que tenho, limitada página bloguística: falarei sobre a doença do meu pai (finalmente).

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A princípio, pequenos divertículos que deviam ser retirados cirurgicamente. Um desses tais, extremamente raro (depois descobrimos que só 200 pessoas no mundo têm algo desses, adquiridos ainda no ventre materno). Meu pai fora o escolhido por Deus. Fez a remoção do então "tumor", que de maligno nada tinha, porém poderia, com muito azar, converter-se em  Linfoma. Cirurgia feita com sucesso. Até o sétimo dia. Até.
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Mire...
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Acompanhei todo o processo, pedindo adiantamento de férias no mestrado e trabalho. Passei dias em Contagem (não citarei, ainda, o nome do hospital por razões óbvias). Meu pai estava bem, quando deu-se um inchaço abdominal estranho, cuja suspeita da junta médica (dois médicos na verdade) era a de que fosse a bexiga. O sétimo dia traria consigo o risco de ruptura da anastomose ("as extremidades" ligadas do intestino, já que parte dele foi retirado). Isso foi dito pela médica que, insistindo na espera, decidiu avaliá-lo apenas no dia seguinte. 
Chegou o dia seguinte. Nada de médica. Abdome ainda mais inchado. Tratamento à base de morfina para aliviar a dor; dieta liberada (comprei manga para o meu pai). Nada de médica. Nada de nada de nada de nada (o hospital não tinha sequer um laxante).
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Mire, eis que no dia seguinte, converso com a médica e lhe dou merecida bronca, cercada de eufemismos e cuidados. Meu pai é submetido a dois exames, se não me engano tomografias. Mas o "contraste" (líquido que demarca a parede intestinal) fixou-se em algum lugar de seu corpo, não sendo digerido. Sinal ruim. Aguardaram pouco mais, segunda tomografia: nada de contraste. Neste momento, mais que qualquer outra coisa, irritou-me o discurso médico, carregado de diminutivos e roseamentos, como se fosse incapaz de compreender o que se passava: - Calma menina; há uma infecçãozinha, mas é normal. Agora você deve é cuidar do seu pai, dá-lo tranquilidade. Amanhã, se preciso, faremos outro procedimento cirúrgico
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Neste céu rezado que é o da minha família e os terços que nele habitam, calma não vem de mim.  Calma vem do tio, da tia, do primo,da prima, da esposa, do amigo e até do "genro": calma não me serve, porque sou de escorpião e minha cor preferida só pode ser vermelho, vermelho sangue. 
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Formei-me no colegial em 2003 e enquanto todos já sabiam quais vestibulares prestar (ou cursinhos a serem feitos), eu passava meus dias entre o Ballet e os trabalhos voluntários (que me formaram como sujeito e coração). No fundo, eu já sabia o que queria, a Medicina. Pouca gente sabe, quase ninguém, mas meu primeiro vestibular foi o de Medicina da USP. Sempre tive dificuldade em química-física-biologia e matemática, destacando-me nas humanas (Letras, Línguas, História e Filosofia). Mas queria ser médica e prestei  Fuvest.  Vexatório, confesso: mas não havia sequer estudado, fiz por fazer. No ano seguinte, mudaríamos-nos para Minas Gerais, o (então) pesadelo que nunca quis. Logo, já ciente de tais percalços, decidi prestar o sonho, antes de engajar-me à realidade e fazer dinheiro com qualquer coisa. 
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Nunca soube o que me levou a tal gosto: o de gente hospitalizada e sofrimento humano. Talvez um irmão morto precocemente por doença cardíaca; um "pseudo" namorado por leucemia linfóide aguda; ou, simplesmente, vontade. Acompanhei tanta gente em hospitais, já fui inclusive internada e amparada. O sonho virou inibição latente que , por vezes, mostra-se em meus sintomas, como assinaturas de revistas médicas e coleção de artigos médicos sobre doenças sanguíneas....Quase optei pela vida religiosa, possivelmente pela esperança em trabalhar num hospital. 
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Irrita-me o discurso médico, porque - modéstia à parte - eu busco o entendimento das coisas. Pois bem, no dia 11 de outubro de 2012, rompeu-se a anastomose cirúrgica e eu estava ali, no quarto, dando-me conta do excremento de fezes ao redor do umbigo de meu pai (que já respirava com dificuldade sem saber por que). Médica? Nada de nada de nada de nada. Uma enfermeira, tão leiga quanto você leitor, pôs espécie de curativo sobre o que exigia remoção cirúrgica urgente. Quatro horas depois, médica ressurge das cinzas levando meu pai ao centro cirúrgico, drenando os elementos fecais. Em seguida, UTI, pesadelo, céu rezado.
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Mire!
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Dez dias na UTI entre vida e morte. Inicialmente, taquicardias e febre, sintomas que cessaram e deram lugar à insuficiência renal, delirium...(confusão mental) provocado - na minha opinião - pela ureia retida. Diálise. Dieta. Cuidado...agora sim, cuidado! Neste meio tempo, meu tio Dário nos veio visitar, entrando comigo - de mãos dadas- na UTI. Conversou com meu pai (que estava inconsciente), coisas de irmãos. Saímos também de mãos dadas, quando me disse: "Agora posso ir embora em paz; seu pai vai se recuperar".
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Esta foi a última vez em que o vi. Meu tio faleceu há alguns dias, devido a ruptura de um aneurisma cerebral. Cinquenta e sete anos. Três filhas. Um neto. Uma esposa e o coração maior que o próprio corpo.
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Saindo da UTI, ficou alguns dias na enfermaria e logo conseguiu alta (...na minha opinião, por falta de leito. Como liberariam alguém cuja ureia estivesse tão alta?).
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Quinze dias depois, é novamente internado por insuficiência renal: potássio e ureia demasiada alta. A infecção generalizada, provocada pela bactéria Acinetobacter baumanii, provavelmente adquirida na segunda cirurgia (não disse acima, então explico: o quadro de meu pai fora grave devido a uma infecção generalizada, atingindo rim e vias respiratórias, causados por tal agente bacteriano. Nunca me explicaram se tal bactéria "surgiu" durante a drenagem das fezes, a colocação do tubo , ou em decorrência de outras bactérias intestinais. O fato é que a  A. baumanni é considerada uma superbactéria e periférica, de modo que a luta pela vida era a luta contra tal corpo estranho).
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Visitei-o todos os finais de semana (tive que retornar ao trabalho e ao mestrado - embora este último confesso ter deixado em décimo sétimo plano, sem concentração necessária para leitura e escrita alguma). Conheci uma série de pessoas e seus céus, em condições melhores  ou piores. Aprendi muito. Aprendi, por exemplo, que o termo "estável" na medicina não passa de eufemismo, é como: "ele está fodido, mas ainda respira".
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Um mês e meio depois, voltam meus pais a Viçosa. Nosso hospital querido da rede pública de saúde do Estado de Minas Gerais marca o retorno do paciente Raimundo José apenas para o dia 25 de janeiro. Absurdamente angustiada, fomos a outro gastroenterologista particular, o qual se negou a assumir o caso tendo em vista uma conduta ética, porém nos pediu exames de praxe, nos quais observamos a estabilidade de meu pai (isto é, fodido, mas vivo). Anemia, ureia e potássio alto, falta de apetite. Encaminhou-no para um neufrologista, cujos exames já feitos serão avaliados nesta sexta.
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Meu desafio pessoal é o de conseguir outro médico para meu pai. Minhas opções são: Muriaé (uma tia já está cuidando disso); São Paulo (meu pai nunca aceitaria ir a São Paulo devido ao gasto que teríamos; entretanto, possuo contatos e amigos lá, além de casa); Juiz de Fora (o médico com quem o cunhado de meu pai fez contato também se negou a assumir o caso); Belo Horizonte (marquei uma consulta com um gastro renomado da UFMG, consulta que me custará os olhos da cara - R$500,00 - sendo o tratamento particular; Viçosa (prostrar-me ante o médico que já conhecemos e, com olhos de choro e sofreguidão, implorar que assuma o caso...).
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As próximas duas semanas serão decisivas. Se nada conseguir, ele volta para Contagem no dia dezoito de janeiro; ele, toda a minha família e nossos céus rezados, adornados por terços e santos. Antes disso, contudo, convenço-o a vender algum imóvel ou a fazer um empréstimo; mas nossos pés, nossos pés lá não tocarão, a depender das negligencias que presenciei (ou quiçá inventei; ver um pai à beira da morte é o suficiente para romper a fronteira entre razão, sanidade e fé).
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Meus pais saíram há pouco, para mais um exame. Temos um vizinho que, além de lindo senhor, é o anjo da guarda de meu pai: assistem a filmes juntos, proseiam, cuidam um do outro. É seu atual motorista. Atual porque decidi, ainda amanhã, matricular-me numa auto escola.
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Eu estou bem, obrigada! Namorado viajando.... Passo os dias em casa, tentando estudar, tentando ler, tentando escrever, tentando não me entristecer (e fazendo nada). Meus priminhos estiveram aqui por esses dias; enchi-os de presentes e mimos, porque amo amá-los. Já se foram todos (a mais velha ainda não veio, não sei se virá) e decidi escrever, para desangustiarme. Às vezes recebo visita de amigas; às vezes saio....mas a incerteza sempre está comigo. Não durmo, e quando o faço tenho algum pesadelo estranho. Há dois dias, sonhei que me perdia em minha própria casa, como num labirinto borgeano. Hoje, uma trombose horrível.
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Mire: Há quase um ano, estive em Buenos Aires - a viagem perfeita. Hoje, a roda da fortuna nos pesa bocado mais, esmagando-nos como mosca. Como fezes. Tudo por conta de um sistema público de saúde que - embora brilhante no que diz respeito às enfermidades "tops", não tem leito suficiente numa enfermaria ou médicos de plantão para quando uma urgência acontecer. Sobrevive-se ao câncer; morre-se de infecção hospitalar.
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Amanhã chegarão os livros de Química e Biologia que comprei.
Mire.

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