sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O Fantástico

*Tela de Oswaldo Guayasmín
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"Le fantastique  c’est  l’hésitation éprouvée par un être qui ne connaît que les lois naturelles, face à un  événement en apparence surnaturel."
(TODOROV, 1990, apud  Dorine Cerqueira).***


Havia um calo de nascença no dedo médio da menina. Certo dia, por volta dos quatro anos, a menina percebeu que também ali, mais que um calo, existia pequeno chalé onde vivia um duende conselheiro. Espantosamente, quando abria olhos e ouvidos, a menina o pedia conselhos que eram prontamente atendidos (Há os que apelam aos anjos ou gênios de lâmpadas; nossa menina tinha um duende, quiçá amarelo, quiçá cor-de-rosa). "Aquele menino gosta de você"; "Muinto não se escreve assim, é MUITO! Quantas vezes já te disse?"; "Você esqueceu o seu guarda-chuvas"; "Peça desculpas a sua mãe!" - dizia o duende adivinho.
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 Não compreendia o porquê escolhera justo seu dedo para habitar, havendo em sua rua tantas garotas tão mais bonitas, loiras e de cachos angelicais. Por alguma razão, o duende a escolhera (ou ela escolhera o duende). Talvez por seus óculos (também cor-de-rosa) e o aparelho dental que lhe caía como borboleta no céu da boca. Conversavam , menina e duende, sobre todas as coisas grandiosas do mundo: bolo de chocolate, jogo de queimada, o namoradinho japonês e , principalmente, estórias. O duende também era um contador de casos, alargando assim o imaginário da menina que, se me permitem a mentirinha, chamava-se Gabriela (porque amarelo é a cor da felicidade).
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Gabriela era feliz com seu duende, embora este - um tanto possessivo - não a deixava ter amigos, exigindo amor e atenção integral. Amor não era liberdade, já naquele tempo, provando-nos de que o duende adivinho não era tão sábio quanto parecia. Seria preciso mais alguns anos para que ambos aprendessem que tanto o amor quanto a amizade são livres como borboletinha (a que Gabriela trazia no céu; seu céu de boca).
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Quando Gabriela foi pela primeira vez à escola (uma escola encantada, com muitas árvores e brinquedos) notou a ausência de chalés que pudessem abrigar seu amigo inseparável, de modo que, aos seis aninhos, Gabriela perdeu o seu primeiro grande amigo. A menina era só lágrima: transitava entre outras crianças, gordas, magras, brancas, negras, finas, finíssimas, gulosas e verdes   - mas seu amigo duende não mais a acompanhava. 
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A aventura da vida perdera a graça. "Escolhera outro dedo para habitar?"; "Alugara um chalé em Ubatuba?" (a vizinha de Gabriela tinha uma casa em Ubatuba, um dos sonhos da menina era o de ver o mar).
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A aventura da vida restringiu-se ao assistir diário da televisão. Não tinha amigos com quem brincar e seus primos, os mais queridos, habitavam outra escola encantada, do lado de lá das montanhas (onde a menina e sua mãe iam apenas duas vezes por ano).
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Mas Gabriela gostava de filmes. Nunca esqueceu-se do dia em que, zapiando a fim de matar tempo e dever de casa, pôs-se diante de uma TV velha (igualmente velha como a de sua vó), e ouviu (sem muita atenção) um diálogo entre fada e menina (no que poderíamos imaginar, caso me permitam outra mentirinha, uma espécie de "Sessão da Tarde").
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- Meninas que nascem com calos nos dedos do meio, da mão esquerda, serão escritoras quando crescerem - disse a fada. (A menina do filme sorriu e, em seguida, a memória de Gabriela já não se recorda o que sucedeu-se, porque isso já faz muitos anos).
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Gabriela se deu conta de que, além de duende, além de chalé, tinha um trunfo que ninguém lhe poderia roubar: um calo escritor. Como nada é perfeito (e Gabriela intuíra isso com maturidade), notou que seu calo era, na verdade, um calo de mão direita, não de esquerda, como profetizou a fada daquele filme desconhecido. Em vez de triste, perguntou-se que benefícios a trariam um calo no dedo médio da mão direita, já que também gostava muito de escrever. Pouco importava a que mão habitava o calo escritor: ele existia e isso era suficiente.
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Calo e menina cresceram. Ambos gostavam de escrever e sentiam-se privilegiados por terem dentro de si o tal dom da palavra inventada. A menina, na ausência do duende, fez amigos, amores, conheceu o zoológico, o cinema, o teatro - e também dançava Ballet. Era uma linda bailarina, embora gordinha  e sem a "planta" dos pés (usou bota ortopédica um tempão). Mas o que amava, com todo coração, eram os momentos de solidão, quando escrevia em seus diários, cadernos e qualquer tipo rústico de papel. Escrevia sobre os primos que viviam além das montanhas, sobre papai e mamãe, sobre o irmãozinho que não tinha; sobre as estórias de um duende amarelo.
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O tempo passou e Gabriela tornou-se adolescente, mas nunca esqueceu os dizeres da fada "....calo no dedo médio - calo no dedo médio - calo no dedo médio." Procurou, incessantemente, recordar-se o nome daquele filme cuja vida a transformara, porém nunca  o soube. Decidiu aprender a escrever bem, escrever um livro, uma estória sem fim...(O filme preferido da infância de Gabriela era "A História sem Fim". Morria de dor quando via Artreyo submergido em terra movediça junto de seu cavalo. Não queria ser - Gabriela - a imperatriz, mas sim o menino guerreiro, messias no mundo de Fantasia).
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Já adulta, aprendeu a ler o fantástico (o calo ainda permanece com ela, motivo de chacota entre amigos e amantes). Uma vez, conheceu tal argentino que vomitou um coelho: "Entre el primero y segundo piso, Andrée, como un anuncio de lo que sería mi vida en su casa, supe que iba a vomitar un conejito. En seguida tuve miedo (¿o era extrañeza? No, miedo de la misma extrañeza, acaso) porque antes de dejar mi casa, sólo dos días antes, había vomitado un conejito y estaba seguro por un mes, por cinco semanas, tal vez seis con un poco de suerte.".
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Descobriu então, naquele momento, o paradeiro de seu velho amigo. Sua ausência já não era fundamental: poderia vomitá-lo quantas vezes quisesse, quantas vezes nos fossem necessárias. Poderia, ainda, inventar e reinventar quantos duendes quisesse, assim como fadas, coelhos, guerreiros e imperatrizes.
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Gabriela descobriu a Literatura e nunca mais se sentiu só.
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(....quanto ao calo, ainda permanece conosco;  e às vezes, teima em arder).

THE END

*(O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural)

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