sábado, 19 de janeiro de 2013

Poção de Ânima

*Bola mágica. Foto de Joao Sines.
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Era uma vez uma menina: escorpiana, ascendente em Áries, Lua em não-sei-quê. Dotada de  sensibilidade incomum para inutilidades, nossa menina orientava-se à medida das pressões que lhe atribuíam: sua hora, a última, funcionava para que suas atividades se saíssem bem, por ter trancafiada em parede cerebral a parábola dos irresponsáveis: – Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
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Estudava, trabalhada em dois ou três empregos (um deles sempre como voluntária) e gostava de ler; às vezes namorava, às vezes não; às vezes dançava, às vezes não. Mas estava sempre para os amigos e  família - apesar dos atritos óbvios, pois, como dito acima, ela era de escorpião e , em consequência, tinha um temperamento dificílimo, ainda que a cara não revele.
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Muito tempo se passou e nossa menina alcançou certa posição desejada por outrem; não o que ela desejava de fato; apesar disso, corria o risco do reconhecimento por ser boa no que fazia, além da lábia que lhe era peculiar. Gostava tanto de música que trazia sempre um MPqualquercoisa gravado na alma, com trilhas sonoras para qualquer tipo de ocasião. Também era viciada em suco de maracujá e bolo de chocolate.
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Teimosa, desafiou hierarquias neuropsiquiátricas a fim de manter sua rotina de "bamba": noites sem dormir, uma cervejinha aqui-acolá; uma cachaça barata para o despertar dionisíaco. 
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Nunca se conformou com às injustiças alheias, porque sentia-se traumaticamente injustiçada pela vida. Militou em séries de questões e foi feliz assim, sentido-se integrada à teia universal.
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Gostava de seriados policiais e tinha mania em pesquisar casos de homicídios culposos na internet. Sofria com os psicopatas. Pena, talvez. Também gostava de sol (sítio, não praia: nunca soube nadar). Estudava línguas, porque achava impressionante a capacidade de se chegar ao outro por meio do verbo. Titubeava no Inglês e no Espanhol, mas sempre se fazia compreender (é porque falava com as mãos, nossa menina cheia de dons).
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Hoje de manhã, deu-se conta de não ser mais a mesma. 
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A curiosidade que a acompanhou por mais de vinte anos parece esquecida em certo lugar; não lê, não pesquisa, não sente prazer nestas coisas de sua profissão. Não sai, não vê amigos; está sempre com a família - não por obrigação - mas por necessidade. Não quer estar sozinha à mercê de suas frustrações, teme ouvir a si mesma e descobrir que se perdeu por aí, que está entristecendo. Não faz objetivos; os antigos, já não realiza; sofre de frustração voluntária. Teve direito à escolha e hoje, com quase trinta, acha que escolheu mal. Escolheu tudo ao contrário. Foi escolhida (a última, como num jogo escolar).
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Faltam três anos para os trinta, bobagem que a oferece pouco de alento. Espera que até lá um milagre aconteça e ela descubra, por fim, o para que veio e está.
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Antes disso, uma dissertação a ser escrita, alguns problemas familiares, um emprego a ser encontrado, um namoro à distância.
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Dispus-me a buscar em terras longínquas uma poção de Ânima para esta menina - tão desvairada - já que não se pode encontrar no Mercado Livre (ela tentou).
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Está cansada, a menina, e cheia de vozes mentais que insistem: - Termine o que tem pra ser terminado. Depois, vire à esquerda.
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Mas o peso da idade dói. Não é mais tão menina nossa menina (apesar de atrair, por razão extraordinária, a amizade de criancinhas, que mal desconfiam o peso dos anos sobre as costas dela. Coisa de energia).
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Quero ajudá-la, porque muito lhe devo. Continuarei buscando tal poção, para que desperte deste sono enclausurado e definhador; para que exploda, arda, queime. 
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É preciso queimar, sempre. O inferior a isso é uma vida titubeada para qual não nasceu (a menina).
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Ela sabe. E o peso do conhecimento dói. Incita o des-arder, aumentando a sonolência e a dúvida - o mal por excelência dos seres vivos.
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Você duvida?

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