segunda-feira, 23 de maio de 2011

Amanheci minha aurora


*Guardo sol dentro de mim. Por Marina Aguiar.


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Estava com pressa, andando em passos compridos e uniformes, quando me pegaste de jeito o milagre. Quem va dizer, depois de coisa tão pequena e forte, que não é misterioso? O amanhã. Amanheci minha aurora. T*, inocente e alheio à maldade da vida. Como um pequeno broto no meio do asfalto, tão verde e bonito. Senti uma dor boa, dessas que te chamam pra vida, pro caminho mais demorado. Meu lugar não é aqui, de trás desse muro sem espinho, mas do lado de lá, junto.
Boa Noite!
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"Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-e-vem, e a vida é burra... Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor... E as pessoas não nascem sempre? O senhor não vê? Deus existe mesmo quando não há.
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O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Vedade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. A força de Deus, quando quer - moço! - me dá medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê! Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre.
Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio da travessia.
Eu queria decifrar as coisas que são importantes... Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.
Viver é muito perigoso.... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo querer o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxaram o mundo para si, para consertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.
[...]
Gosto melhor, para a idéia bem se abrir, é viajar em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recibido e no dado? Ai como? O senhor sabe: há coisas medonhas demais, têm. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio. Vai, mar...

Ver o luar aluminando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se fase sozinho.
Se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente.
Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada.
[...]
Comigo as coisas não têm hoje e anteontem amanhã: é sempre.
E o menino pôs a mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da minha pele, no profundo, como desse a minhas carnes alguma coisa. Era uma mão branca, com os dedos dela declidados. "Você também é animoso..." - me disse. Amanheci minha aurora.
O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d´alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção do Siruiz. Algum significado isso tem?... Aquele dia tinha sido forte coisa.
Eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.
Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as palavras... E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandezas. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos - logo eu disse: "Diadorim... Diadorim!" - com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava.... Aquele dia fora meu, me pertencia. Sertão é isto, o senho sabe: tudo incerto, tudo certo.
O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.
Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Deus governa grandeza."
(Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas).

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