terça-feira, 10 de maio de 2011

O possessivo da menina.

*Blooming in charms. Foto de Lili.
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I need a phone call
I need a raincoat
I need a big love
I need a phone call
(Raining in Baltimore -
Counting Crows).

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Então havia uma menina. Um tanto brejeira, dessas quais nunca diriamos ter vivido numa cidade grande, embora o /r/ retroflexo ainda a condenasse, de quando em quando. Na verdade , não é retroflexo - o r da menina - mas aquele que vos narra não sabe mais diferenciar um do outro, a problemática dos r´s da Língua Portuguesa. Digamos apenas que havia uma menina num ponto de ônibus, o mesmo de todos os dias se não fosse pelo que lhe sucedera horas e horas antes.
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Depois de perder o primeiro ônibus, a menina se deu conta de que não devia ter insistido tanto em acordar e fingir que não se importava. Mas já era tão tarde: já havia aceito a carona de seus amigos, cumprimentado a loira gostosa, ex namorada, ou atual, do amigo de um dos seus vinte mil primos brasileiros; também já havia acenado para o senhor negro de camisa branca, que caminhava sem pestanejar, e, por fim, havia acabado de conquistar aquele menino, depois de ter-lhe mostrado um pedaço da língua, num momento de alienação. Já era tarde demais, o mundo queria que ela proseguisse, dando-lhe carona, café e camisas brancas que transitavam entre ela e seu mundo interior, ora acenando-lhe, ora arrancando-lhe suspiros: ora invisíveis como sonâmbulos ou recém mortos.
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Naquela manhã, recordara o uso dos pronomes possessivos na aula de Espanhol. Nunca os aprendera de fato, e sabia que aprender uma língua nova só podia se dar quando soubesse, com propriedade, articular sentenças usando tais pronomes. Foi assim quando deixou de balbucitar a língua materna, passando a impor-se no mundo das pessoas maiores. Minha boneca. Minha mãe. Meu pai. Nas aulas de inglês, ainda adolescente, o mesmo lhe ocorrera, They´re my favourite band. This question is mine. He´s my best friend of ever. Logo, a ansiedade pelos possessivos era uma forma de se contentar com o que era dela, e não era, embora a diferença ainda não fosse tão clara.
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Mi famila es tu familia/ mis llaves son tus llaves/ mi bolígrafo es tu bolígrafo/ mis sueños son tus suenõs - leu a menina a pedido do professor, jovem e interessante como ela: pediu que lesse as sentenças referentes à caixa de texto "El namorado". Também havia a opção el egocéntrico, el solidário - mas fora escolhida para o medianamente complexo, e o lera razoavelmente, até o momento em que o celular bipou a primeira mensagem do dia:
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"Que alívio, hein irmã! Agora podemos curtir sua formatura sem o cel na mão...kkkk! Vai na chopada?" - enviou o irmão.
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Tempos depois, a segunda mensagem chegara, da irmã da menina: "Sinto muito, [...], espero que vc supere isso t+ bju". Ainda há outras três mensagens que provavelmente chegarão até a metade do seu dia. O plano de celular da menina, e do pai da menina, permitem o envio infinito dessas mensagens, para a alegria da menina que não sabe viver desapercebida e sem crédito. "Sério? vcs decidiram isso hj? sera que acabou msm? vamos na rua a tarde? bj! - eis a terceira mensagem, da amiga fofa e deslumbrada da menina, que não da mais crédito (moral) às angústias diárias da mesma. Ainda faltam duas mensagens que chegarão antes das 15 horas de hoje.
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Porque os amigos da menina têm o mesmo plano de celular.
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Na noite anterior, adormeceu com a mesma blusa verde que colocara depois do banho. Desligou o computador, fumou o último cigarro, escovou os dentes e balbuciou uma oração - entre os dentes - sem o mínimo sinal de miséria humana. Estava entre o neutro e o ausente, talvez um pouco satisfeita, inconscientemente, pelo recebimento da carta de alforria, carta que conseguira por provocação e não espontaneidade. Dormiu pensando que teria um dia pela frente para sofrer e se recuperar, porque quarta é para a monografia, quinta para a biografia, sexta para a monografia e sábado, talvez monografia, talvez não.
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Mas ao abrir os olhos se deu conta de que era terça-feira. Sentiu ódio da vida e das terças-feiras, mas ainda era pouco: o ódio provinha da lembrança de que mais tarde teria aquela aula que "puxara" por gosto, mas que tornara-se insustentável para uma terça como aquela, tão especial. Pensou em fingir uma diarréia, uma febre, uma qualquer coisa, ir à divisão de saúde e pegar um atestado médico - como todos os seus amigos um dia fizeram - mas a menina não saberia mentir o suficiente, nem mesmo para um desconhecido. Também daria aula nesta terça, sendo essa uma das coisas que mais gosta na vida, mas não para aquela ... tão especial. Pensou novamente na mentira que inventaria, mas mentir era para menina um sacrifício tão grande que decidiu optar pela verdade-com-cara-amarrada; seria um dia ruim, mas existiria para que chegasse a quarta, a quinta, a sexta, o sábado, e se tiver sorte, o domingo.
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Errou os dias da semana na prova de Espanhol.
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Essas coisas sempre lhe acontecem às terças.
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Ainda assim levantou, sem lágrima. Parecia tão monotonamente conformada, que quem a visse de longe arriscaria o palpite de que estava apenas com cólica.
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Quando o professor interessante e jovem disse, no entanto, que marcaria uma prova "oral" para o fim do semestre, a lágrima veio. E foi tão engraçado, o momento, que a menina olhou para o chão tentando disfarçar o abismo daquela tristeza mais que compreendida. Colocou os óculos para dissimular, óculos que há poucos meses ainda não levavam plural, visto que ela confia no erro de vez em quando...(que os lingüístas não me leiam esse texto).
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Porque a língua é um labirinto.
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A lágrima veio mas cessou com a mesma rapidez. Depois disso, corredores e passos, o ordinário ponto de ônibus e um menino de camisa vermelha.
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Ao deparar-se com a menina, tão mais alta e verde, o pequeno e vermelho menino intimidou-se: escondera-se no colo da mãe, até se sentir seguro para a investida, alguns segundos depois. Ela , que perdera o primeiro ônibus, voltou à lanchonete e tomou um café. Sentou-se numa mesa ao sol, porque estava excessivamente frio, a única mesa dentre as outras três na qual estava um cocô de passarinho. Não sentiu raiva ou nojo, tampouco mudou de mesa, porque todos os seres vivos cagam, até mesmo os mais nobres de espírito.
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Riu de si mesma e do cão que dormia a seu lado. Sentiu falta de uma série de coisas, dentre elas seu último cachorro, morto numa briga de cães, e de sua avó. Sentia tanta raiva da avó, na maioria das vezes quando estava viva, que nunca imaginou a saudade que sentiria após sua morte. Sua avó era tão brejeira quanto a menina; tinha um tom de voz desses de mãe que acalentam a alma mesmo quando nos cortam com navalhas; tinha um cheiro maravilhoso...cheiro da menina, que habita a sua memória e todos os aposentos por onde ambas passam.
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Ao chegar pela segunda vez ao ponto de ônibus, o menino vermelho a reconheceu e sorriu. Ela mostrou-lhe a língua, a fim de quebrar-lhe a resistência. Brincaram de esconde-esconde por alguns minutos, e quando deu-se por apaixonado, o menino, perdidamente apaixonado, o ônibus da menina veio para que fosse embora e continuasse a se enconder da terça de hoje. O menino foi trocado por uma caixa grande de quatro rodas, um ônibus. Estarás triste? Se fosse a menina, trocada por um ônibus, ficaria desoladamente triste, como se lhe tirassem o sopro de ar e a vontade d'água.
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Na aula de Espanhol, o professor ensinava o vocabulário para vestuário. Disse para a turma:
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- El saco de la "menina" es verde.
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Deu-se o riso catártico que salvara o dia! Riso comum, riso social, desses que te causam lágrimas. A menina aproveitou o lapso para chorar, enquanto ria aquele riso alto e neurótico de sempre. Aproveitou para chorar a lágrima contida, sentindo-se iluminada e leve. É provável que o professor não compreenda o trocadilho, à princípio. Alguém terá de lhe explicar, dizer que não se ria dele ou da sua espontaneidade, mas sim da diferença que segrega os seres. Porque os sentimentos são os mesmos, mas parte deles são incompreensíveis quando traduzidos: perdem o encanto e a profundidade, como signficante esvaziado e mudo.
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Porque a língua da menina é um labirinto.
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There's things I remember and things I forget
I miss you
I guess that I should
Three thousand five hundred miles away
But what would you change if you could?

(Raining in Baltimore - Counting Crows).



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